quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

O Eterno Retorno (ou Auto de Ano Novo da Serra da Bocaina - 1835/2011)


Paraty, 30 de dezembro de 2010
Temi pelo pior. A previsão era que chegassem às três horas, e como desfrutava o recesso de fim de ano voltei pra casa e abri uma cerveja pra esperar. Não estava só. Walison também tinha um copo sobre a mesa de latão que dá vida ao meu quintal com os resquícios de cervejas velhas que afogaram mágoas e brindaram alegrias por tantos anos em um ou mais bares de qualquer lugar do Brasil. Vinham de São Paulo, e quando ligaram ao meio-dia avisando que já estavam na metade do caminho imaginei que o Atlântico já fizesse parte da vista da estrada. Fiz um mapa horroroso indicando como se chega à minha casa, a partir do trevo rodoviário na entrada da cidade. Nem me ocorreu avisar que o caminho natural de quem vem pra Paraty de São Paulo é por Ubatuba, a terra de Cunhambebe.

Brasília, anos 2000
De muitas excrescências políticas vistas e vividas na capital federal, uma das mais surreais foi a mobilização de parte da comunidade do Lago Norte (bairro peninsular de mansões colado ao Plano Piloto) contra a construção de uma segunda ponte de acesso. Alegavam que a ponte apenas serviria ao acesso e mobilidade das comunidades mais pobres do entorno do bairro (Paranoá e Varjão, em especial). Para os “militantes” lago-nortinos, todos proprietários de carros particulares, mobilidade não era demanda prioritária. E, numa relação que demonstra sensível capacidade argumentativa, intuíam que a facilitação do acesso ao Lago Norte pela vizinhança menos abastada traria toda a sorte de mazelas para sua ilibada comunidade.

Paraty, Era Cenozóica, Holoceno
Bombardeado a vida inteira por este tipo de racionalidade, não foi exatamente com surpresa que fui perceber, logo na primeira semana em Paraty, que o mesmíssimo discurso faz sucesso por aqui também. O alvo prioritário é a estrada Paraty-Cunha, que aliviaria o tráfego da infame BR 101, devolvendo à histórica cidade portuária sua ligação com São Paulo e Minas. A Paraty-Cunha segue a rota da antiga – e agora de volta à moda pra turma do turismo de aventura – Estrada Real, atravessando o Parque Nacional da Serra da Bocaina. A previsão é de que as obras de reforma da estrada (falta um trecho do lado fluminense, ainda não asfaltado) fiquem prontas até o fim de 2011. Será muito mais fácil o acesso terrestre à cidade, que não mais se dará necessariamente pela tensa costeira sinuosa. E é isso que assusta a população abastada local, a perspectiva de que o acesso facilitado traga ainda mais turistas pra cá, e um turismo menos – digamos – chique. Milhares de famílias de motobóis, contínuos e outros “populares” paulistanos escolhendo a cidade colonial pra evitar nos feriados de sol os engarrafamentos do Guarujá.

Paraty, 30 de dezembro de 2010
Já eram quase quatro horas quando decidi telefonar. Não quis encher o saco antes, porque um atraso de meia hora é compreensível, imaginei a estrada cheia, e não queria parecer ansioso. Mas eu já começava a me embriagar – esperávamos que todos chegassem pra um almoço coletivo e com a tarde avançada a cerveja gelada roncava no meu estômago. Fiquei preocupado: acidentes não são raros na BR 101, e não é nada bem afamado o posto policial que faz ronda nos primeiros trechos fluminenses de estrada, logo após a fronteira de Ubatuba. Liguei primeiro no telefone de Marina, desligado ou fora da área de serviço; com o do Antonio, a mesma coisa. Achei estranho, porque há cobertura em todo o trajeto da Rio-Santos. Mais uma cerveja, e voltei a telefonar. Quase às 17 horas, após muitas cervejas e muito ouvir as gravações de celular fora de área, estava certo de que estariam acidentados ou presos – possivelmente, e na melhor das hipóteses, teriam sido ganhos com um baseado ou coisa parecida. Chegaram. Orientados por uma pegadinha do GPS, tomaram a “mais curta” Paraty-Cunha.

Guaratinguetá, 1º de janeiro de 1835
Abaixo assinado, datado de 1º de janeiro de 1835, firmado por 55 “cidadãos, filhos e moradores da Provincia de São Paulo, [Guaratinguetá] trabalhando efetivamente com suas tropas na estrada que daquella Provincia se dirige a essa Villa...” e dirigido à Câmara de Paraty, que dizia “representar contra o deplorável estado em que ora, mais que nunca, se acha a Serra denominada do Paraty; é sem dúvidas, Ilmos. Srs., assás doloroso, que apezar de pagarem tantos Direitos e de concorrerem tão eficazmente para o aumento e prosperidade dessa Grande Villa, sejão contudo os infra escritos condenados a sofrerem tantos males, encomodos e prejuizos, em conseqüência do desprezo em que se acha aquela Serra, desprezo que tão caro custa aos abaixo assinados, que por muitos titulos parece que deveriam merecer mais cuidados e atenções de V. Sas.; ao menos Ilmos. Srs. que uma só vez a cada anno se ordenasse o conserto de alguns mais notaveis precipicios que ali se encontram, já seria isso tolerável. Porém um abandono assim tão completo da única Estrada pela qual se acarreta para o Porto os ricos produtos daquella Provincia, é certamente digno de lástima. Os abaixo assinados, sofredores já de grandes perdas, não só em seus animais, como em seus próprios Escravos, vem perante V. Sas. reclamar com urgência por algum conserto naquella Serra, e quando isso não possam conseguir, ao menos pedir a abolição dos Direitos a que estão obrigados no Registro da Cachoeira. Tal é o apuro, Ilmos. Srs. a que os abaixo assinados são forçados: da inteireza pois e justiça de V. Sas. depende talvez a continuação ou cessassão de um commercio que muito influi, não só para a felicidade dos abaixo assinados, como e ainda muito mais para a prosperidade desse Porto. É pois com a maior confiança que os abaixo assinados, desesperados com os obstáculos que naquella Serra encontram, se dirigem diretamente a V. Sas., convencidos intimamente de que esta sua representação ou petição será indubitavelmente recebida e atendida como é de esperar-se do zelo e patriotismo de V. Sas.”.

Villa de Nossa Senhora dos Remédios de Paraty, Era de Peixes
Sobre os impostos, ou “Direitos” (os pedágios da época), escreve o Dr. Samuel Costa que “Era tal a situação de angústia dos tropeiros, (precisando muitas vezes na secção da Vargem do Bananal estender os ligais de couro para as tropas sobre elas atravessarem os lamaçais), que ofereceram a contribuição voluntária de ‘quarenta réis’ por pessoa ou animal que passasse, começando a ser arrecadada em 22 de Abril de 1823, produzindo daí a 17 meses um rendimento líquido de perto de 800$000 que, naquele tempo era dinheiro apreciável, e por fim o Governo Imperial atendendo representação da Câmara da Vila, de 4 de Dezembro de 1824, autorizou, por Portaria de 18 do mesmo mês a aplicação do imposto de 80 réis por alqueire de sal importado da Bahia e Pernambuco para a realização dos consertos necessários. Era encarregado dos serviços, o Sargento Mór de Engenheiros Carlos Martins Penna, que construiu pela primeira vêz a ponte do ‘Registro’”.

Paraty, passagem ao ano 2011 da Era Cristã
Com o carro bastante avariado, me contaram que levaram quase duas horas pra vencer pouco mais de dez quilômetros, por uma trilha de precipícios por onde nem as mulas dos tropeiros passariam confortáveis. O Google Maps indica o mesmo e trágico – embora lindíssimo – caminho, em meio a um dos trechos de mais bem preservada Mata Atlântica. Sentamo-nos na nada chique mesa de latão, abrimos mais uma gelada, e como motobóis paulistanos em férias pusemo-nos a beber, ouvir as músicas que gostamos, e falar dos assuntos que quisemos, matando as saudades até firmar 2011.

Parque Nacional da Serra da Bocaina, Estrada Paraty-Cunha, RJ-165.
Registro de viagem de Marina e Antônio a Paraty, dez/2010.

3 comentários:

  1. Adorei seu estilo, Pedro! Muito bem vindo o seu blog. Texto primoroso, imagens riquíssimas (escritas e fotografadas), humor, informação, sacadas legais e uma visão de mundo bem pessoal e livre. Virei sempre aqui.
    Beijo,
    Ana.

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  2. Apenas um adendo: informação do MapLink (site pretensamente sério e confiável) de rota "considerando apenas as vias principais" também indica o trajeto Cunha-Paraty.
    Ainda não entendi a pegadinha...

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  3. Pedro, nesse momento não consigo pensar num jeito melhor de começar um ano do que como descreveu: bebendo o quer, falando sobre o que gosta, ouvindo suas músicas, com bons amigos. Pena que não vai poder ir pra Recife pra gente arrasar no pós carnaval nesse mesmo estilo onda boa (no qual somos proficientes!)! Sentiremos sua falta!
    Mas ainda bem que minha sede por bate-papo, uma cerveja verdadeiramente gelada e uma mesa nada chique (tudo que quero é sentar-me à beira de uma mesa nada chique e tomar cerveja sem uma preocupação na cabeça) me fará debandar praí assim que me alojar em terras fluminenses! ;)
    Seus contos aqui são ótima propaganda, viu? Vai ter que tomar cuidado com os clientes fidelidade da casinha!
    Beijos grandes e saudades também! :*

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