quinta-feira, 21 de novembro de 2013

República dos Performers - Contemplando o vinho derramado numa sexta a seco no Eixão

Numa noite primaveril de sexta-feira, a classe artística brasiliense se reuniu para protestar contra a federalização do Museu da República, obra tardia do velho Niemeyer também conhecida como "estrela da morte" e "ovo da esplanada". 

O evento foi patrocinado pelo maior interessado na conservação do museu sob a gestão do Governo do Distrito Federal: o atual diretor. Wagner Barja, bastante respeitado e apoiado pelos artistas locais, supostamente grande conhecedor da arte produzida no Planalto Central, quer manter o museu fora do jugo do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), e de quebra manter o emprego.

Como estímulo à presença de participantes no ato (sabedores ou não do que se passava), ofereceu-se uma exposição de obras do acervo do museu, basicamente de artistas brasilienses e goianos, bem montada, com bons trabalhos, que permanece aberta por um bom tempo, e a boa e velha vernissage com coquetel. Apareceu bastante gente. Como oferta adicional, território livre para performers em geral.

Do lado de fora, camelôs vendiam cerveja enlatada, que a administração do museu amistosamente permitia ser levada para dentro, sem restrições. Entrei na sala de exibição com uma bolsa térmica, bem abastecida, com certo receio de que pudesse ser barrado, mas não apenas não o fui como fui também confundido por alguns presentes com mais um performer.

Não se sabe se havia alguma conceituação bem fundamentada por trás, mas alguns dos presentes eram abordados por um mendigo bêbado, bastante maltrapilho, que ia direto ao ponto e depois partia sem esperar a resposta: "O mundo tá acabando, o que você vai levar?"

A atriz Adriana se preparava para iniciar sua demonstração, acompanhada por mais dois atores, quando outra senhora anunciou: "Vai começar a performance do Dudu lá fora, no sinal". A maioria do pessoal preferiu prestigiar o trabalho do trio no museu. Vestindo roupas amarelas, os três saíram desfilando pelo grande salão superior do museu, em meio às obras, cada um para um lado, sem rumo definido: o primeiro saiu pedalando uma bicicleta, o segundo puxando um carrinho de feira, a terceira apenas andando a esmo. Em comum, cada um levava uma caixa de som com barulhos de água e passarinhos. Não demorou para que outros ciclistas  - até onde se sabe, sem qualquer relação com a performance - começassem a aparecer pela sala. Um deles pedalava uma bicicleta que era um pedaço de pau, reto como uma viga, com duas rodas abaixo, aparentemente bastante desconfortável. Houve quem lamentasse ter deixado a própria bicicleta amarrada a um poste lá embaixo.

Diferentemente de muitos museus mundo afora, as fotos estavam absolutamente liberadas e eram abundantes. Um grupo de pessoas, incluindo crianças, espalhava umas centenas - talvez uns milhares - de tampinhas de garrafa pet pelo chão da parte central do salão, formando uma espécie de mandala sem muita regra. Alguns presentes aproveitaram para largar por ali as latinhas que iam bebendo, no intuito de compor a obra.

Findo o ato artístico dos trio de amarelo, os presentes perceberam que para todos os lados onde se olhava, acontecia alguma coisa que poderia ou não ser uma performance. Em um dos cantos, um grupo de jovens estudantes fazia algo que parecia ser uma ciranda. Um iniciado no assunto, perguntado se conhecia aqueles artistas, disse que era só um bando de adolescentes bêbados, fazendo o que faria em qualquer outro lugar.

Um senhor, perguntado sobre quais seriam os principais argumentos contra a federalização do museu, fez côro com a classe artística local: "O museu foi construído com recursos locais, o público já tem sido um dos maiores do país, há oportunidade para os artistas da região exporem, a política nacional de museus preconiza que os municípios e estados devem ter seus próprios aparelhos, um eventual museu federal só serviria pra trazer renascentistas e outros figurões pro público da Copa. E o Ibram já não dá conta dos museus que já tem." Dono de tantos argumentos, é possível que ele tenha deixado o mais venenoso para o fim. 

Ainda em setembro, o artista plástico goiano Divino Sobral declarara ao jornal O Hoje que o Ibram não estaria preparado para lidar com arte, e muito menos com arte contemporânea. “Levar para o corpo do Ibram um museu desta importância não implica necessariamente na profissionalização da instituição. Alguém pode me dizer quantos museus federais funcionam bem, equipados com tecnologia, com curadores, com conselhos, com museólogos, técnicos de conservação e restauro, com equipes de educativo?”, disparou.

*

Visto que a lua subia e as barrigas roncavam, parte dos comensais começou a debandar. Nesse momento, o coquetel foi anunciado. As mesas foram pilhadas com rapidez. Debaixo de uma delas, o mesmo hippie que abordara alguns presentes logo na entrada dormia pesadamente o sono dos justos. Parecia estar bastante satisfeito, na possível melhor performance da noite.

Adriana apareceu, satisfeita com a participação na noite. Perguntada sobre o que significava a performance com as caixas de som, ela disse que se tratava de "uma intervenção sonora, pra marcar presença". Curiosamente, na hora em que ela contava isso, do palco que estava acabando de ser montado na praça logo ao lado do museu, para o show da cantora Céu no dia seguinte, ecoaram súbita e repentinamente, numa altura ensurdecedora, os primeiros acordes de "Unforgiven", o velho clássico do Metallica. A performance do andarilho ainda era a melhor de todas, mas no quesito "intervenção sonora", o técnico de som de Céu mereceu uma menção honrosa. 

Alguns dos presentes àquela noite no Museu da República foram embora com fome. E com a sensação de que, qualquer que seja o resultado do imbróglio administrativo entre Ibram e GDF, provavelmente a classe artística local não terá muito o que comemorar. No atual cenário, pelo menos, eles têm um diretor com peito para bancar no próprio museu uma exposição de enfrentamento ao Ministério da Cultura. Mas se quiser mais adesão à causa, terá de caprichar melhor nos próximos coquetéis.

Tarde da noite, um servidor federal - tipo de alta incidência no Plano Piloto, atravessando o Eixo Monumental a bordo de uma valente Caloi, constatou com surpresa que a performance do Dudu (?) ainda não havia acabado. No meio da rua, protegido por uma viatura do Detran, um sujeito derramava sobre o asfalto garrafas e mais garrafas de vinho barato de cinco litros. O cheiro era insuportável, a avenida estava encharcada, uma infinidade de garrafões vazios enfileirados. O mendigo hippie, ainda dono da melhor performance da noite, teria ficado consternado por tamanho desperdício. Pensando bem, o vinho derramado foi a melhor performance de uma noite de vernissage sem salgadinhos.

[Depois de anos de inatividade, o blog faz uma ligeira reaparição, mais cobogó que colonial. Era originalmente uma comunicação pessoal, de Brasília para Paraty, e-mail com notícias da capital para os amigos da Cidade Histórica após o meu retorno à terra natal. O preciso HMilen deu uma arredondada nessa versão. Já não estou radicado em Paraty, mas o causo só comprova a irmandade entre as duas cidades, de bicicletas, museus e esculhambação.]

terça-feira, 19 de julho de 2011

Balada de Paraty revolta

Morreu às duas da manhã de uma segunda-feira
A noite ardia escura, mar calmo na costeira
Furou-lhe a lâmina fria ainda era domingo
As pedras estavam secas, caiu o primeiro pingo
Na cidade a água rubra, jorrando na pedraria
Maré esperando a hora do rito de assepsia

Saiu pela noite quente, tomou três no Amarelinho
Já não sabia pra que bebia, só não queria estar sozinho
Fez um brinde aos companheiros, mas não o queriam lá
Bebia, ficava chato, não sabia quando parar
Sentiu-se triste, rejeitado
Foi cair em outro lugar

Era noite de lua cheia, brisa quente da costeira
Chovia no alto da serra, temporal na cabeceira
No bar todo mundo sorria, mas não sorriam consigo
Pensou no quanto queria, naquela hora um amigo
Doeu-lhe não ser querido, invejou aquela alegria
Bebeu a saideira com raiva, disfarce da melancolia

As águas se revolviam, o ímpeto era crescente
Não tardava o Perequê-Açu subia e virava enchente
Saiu falando de amor, mas era ódio o que sentia
A cabeça confusa e cheia, mais uma dose vazia
Foi pra porta do forró
Pra ver o que acontecia

As moças dançavam bonito, os homens se divertiam
O sangue subiu à cabeça, as veias da pica se enchiam
Puxou a primeira que viu, nem bem sabia o que queria
O marido puxou a faca, presa da valentia
Furou-lhe a barriga de frente
O sangue jorrou impuro, tromba d'aguardente

Caiu torto sobre as pedras, nunca encontrou posição
Emprestou suas tripas à história secular daquele chão
Ficou a esperar que o Estado lhe desse enfim um abrigo
Não viriam lhe chorar, faltava-lhe o pranto amigo
A noite seria no claro, mais uma dormida na rua
Eram ele e a maré, embalados pela lua

O leito ganhava corpo, a tromba d'água descia
O corpo fazia leito na rua que amanhecia
Às onze sobe a maré, a enchente se anuncia
O corpo jaz intocado, o povo lhe policia
Não há quem lhe possa levar, acreditem vocês
Rabecão aqui não há, e o de Angra só chega às seis

Levou-lhe o corpo a enchente
Lavou-lhe a morte indecente
Deu capa de jornal
Trocaram-lhe a miséria do copo, e do crime passional
Pela miséria do corpo
Triste sina de indigente
Em tragédia ambiental

E o mar lavou as calçadas


Escrevi este poema em homenagem ao Zé Kleber, poeta maior da cidade, autor desta Balada de Paraty.
Foi um choque deparar, ainda no verão, com um corpo jazendo no chão, dia avançado, em pleno Centro Histórico. Vários curiosos em volta, alguém me contou que morrera no início da madrugada. Paraty não possui IML, o mais próximo fica em Angra, e o rabecão só passa aqui no final da tarde. Quem morre durante a noite espera o dia inteiro pela carona derradeira. Se o corpo caiu na rua, sobretudo quando o caso pede perícia, ali ficará à vista de todos e de todas. Cobrem-no com um lençol, para tentar amenizar o hediondo da cena. Quando o calor é demais, improvisam alguns guarda-sóis para tentar retardar a putrefação e o odor pestilento.
Quando presenciei a cena, vários meses atrás, fiquei estarrecido. Custando a acreditar na realidade de algo tão absurdo, tentei escrever sobre aquilo. Comecei a escrever um conto, que acabei não terminando. Calhou de justo naquele dia o rio Perequê-Açu subir até quase transbordar, e eu fiquei imaginando uma história fantástica (porém nada impossível) em que a enchente varreria a cidade e carregaria o corpo. Passado o momento crítico da catástrofe, o corpo seria encontrado e lhe seria atribuída a morte pela enchente, e não pela facada (também foi uma observadora curiosa do corpo quem me contou que a morte fora por faca). E o sujeito morreria assim pela segunda vez.
Hoje, escutando o Zé Kleber, lembrei da história e resolvi tentar novamente escrevê-la. Saiu na forma de poema, um tanto torto, gênero em que nunca me aventurei (mesmo como leitor, nunca fui muito longe). Ainda sei pouco sobre o Zé Kleber, uma das figuras mais queridas, admiradas e lembradas da cidade. Morreu em 1989, logo após ser eleito vereador. Mas sei que lutou apaixonadamente por Paraty e deixou lindas canções e poemas sobre a cidade. Várias delas podem ser encontradas neste link, sempre ilustradas por belas imagens de uma Paraty anterior à inauguração da BR-101 e da chegada do turismo. Até hoje, nas rodas de música locais, sempre são lembradas e cantadas em coro, com muita emoção, as canções do Zé Kleber.
Em uma próxima oportunidade escrevo sobre a violência por aqui. Por incrível que possa parecer, Paraty é considerado um dos municípios mais violentos do Brasil, em número de homicídios por habitante. Segundo o Mapa da Violência 2011, produzido pelo Instituto Sangari e pelo Ministério da Justiça, Paraty está na 72º posição dentre os mais de 5 mil municípios do país, com o número alarmante de 62,5 homicídios por 100 mil habitantes para o ano de referência de 2008. Hoje mesmo ouvi dizer, no boca a boca, que mais de uma pessoa perdeu a vida no último final de semana por causas violentas. As mortes, de maneira geral, são atribuídas a relações com o tráfico de drogas e a crimes passionais (normalmente, jovens que matam outros jovens por ciúmes em relação às suas namoradas). Nunca soube de um assassinato em assalto, por exemplo. A arma quase sempre é de fogo, mas às vezes puxa-se a faca.
E o rabecão só volta às seis.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Dos Alterógrafos


O autógrafo como fetiche

Alguém já deve ter dito das dedicatórias, sobretudo as autógrafas, que compõem em si subgênero literário. Algumas são, de fato, peças literárias. Ouvi dizer por esses dias que as dedicatórias em verso do Drummond viraram livro. Digo isso só pra citar um exemplo, e pra parecer que este blog está antenado nos lançamentos (não, não está). Mas acho que é um exemplo excepcional, e de fato as dedicatórias costumam ser outra coisa (pelo menos se concordarmos que literatura não é sinônimo de escrita).

Das dedicatórias, autógrafas ou não (e falo aqui especialmente daquelas derramadas sobre livros, em geral na folha de rosto), há muito o que se pode dizer, de muitas perspectivas, e muito elas dizem da literatura. Da literatura como campo, diga-se, que envolve não apenas a dimensão estética, mas tudo o que a ela mais diretamente se associa, incluído aí o mercado literário.

Há o fetiche, talvez o elemento mais óbvio. E um fetiche exemplar, olhemos-lhe como o faria Marx ou como o faria Freud. O garrancho missivista que reinventa e eterniza numa mesma frase a relação muitas vezes fantasiosa entre o nome de quem escreve, remetente, e o nome de quem lê, destinatário; a mácula de tinta na página clara, que curiosamente tornará o exemplar, dali em diante, um objeto imaculável; a marca pessoal da autora, na letra de próprio punho, à mercê da grafologia amadora do leitor, restituindo algo do elemento pessoal e artesanal em um objeto que se tornou industrial.

Flip

Em um evento literário como a Flip, autógrafos e dedicatórias ocupam um lugar muito especial. Pautam decisões da curadoria, tiram leitores e leitoras de casa (às vezes de muito longe), produzem filas monumentais, movimentam as livrarias. A livraria oficial do evento, vinda diretamente de São Paulo, ficava, não por acaso, justamente na “Tenda dos Autógrafos”, bem ao lado da mesa onde se sentavam autores e autoras (para o descontentamento do casal local de livreiros, desprestigiado pela organização da Festa). Nunca se vendeu tantos livros em tão pouco tempo como nos minutos imediatos após a bem sucedida palestra daquele escritor carismático, que em instantes capricharia na simpatia enquanto dedicaria beijos e abraços assinados por três horas, até que seu punho acusasse a tendinite (tá bom!, lançamento de Harry Potter vende mais, mesmo sem autógrafo).

Alguém certamente já escreveu um belo e merecido ensaio sobre as dedicatórias autógrafas, e eu serei grato a quem me indicar onde encontrá-lo. Mas não vou ensaiar aqui sobre o pretenso subgênero. Mais do que isso, nesses dias pós-Flip, me interessam as histórias por trás dos rabiscos. Acho que elas contam muito da relação entre leitores e leitoras (bibliófilos/as ou não), autores e autoras, livros e literatura, e inevitavelmente o mercado editorial e seus eventos.

Transdedicatórias

Meu amigo Carlos me contava, dia desses, de uma bonita coincidência. Comprou um livro usado, pela internet, e recebeu-o dedicado. Não a ele, é evidente. Tratava-se de uma antiga dedicatória, do tempo da edição. Mas o antigo portador era homônimo, e meu amigo foi surpreendido com um afago transgeracional, de alguém que jamais conhecera (possivelmente morto), endereçando palavras de afeto “Ao Carlos”. O Carlos chorou quando abriu o pacote, diante daquilo que a Ju interpretou como uma conspiração do universo. As dedicatórias são muitas vezes inspiradoras, mas às vezes são também conspiradoras.

O livro acidentalmente encaminhado ao destinatário desconhecido (pelo autor) da dedicatória, ainda redime pelo acaso a dimensão mais sublime da livraria de usados em tempos de sebos virtuais. Se já não há a possibilidade de se deparar, em meio a prateleiras nunca dantes exploradas pela humanidade, com exemplares raros e achados inesperados - o que dava sentido à função de vasculhador de sebos -, resta ainda a possibilidade do imponderável pela casualidade. Já não é mais o comprador bibliófilo quem vasculha as prateleiras, abana a poeira e afasta as teias de aranha em busca do grande achado. Agora cabe-lhe utilizar as palavras corretas na busca em estante virtual, encontrar o livro pretendido (o procurado, não o descoberto) e esperar que o livreiro o separe e encaminhe pelo correio. O que resta de acaso fica com coincidências mágicas como a da homonímia autografal.

Alterógrafos

Este exemplo de transdedicatória sugeriu-me ainda o grande valor não do autógrafo, mas do altógrafo. Ou alterógrafo, pra evitarmos o erro do neologismo heterógrafo, tão propenso a mal-entendimentos futuros. Trata-se daqueles livros que são autografados, mas não pelo autor. É um gênero muito próximo das dedicatórias afetuosas que costumam ser oferecidas com os livros presenteados (talvez até as inclua, em muitos casos pelo menos), mas que ainda guarda algo da relação autor(a)-leitor(a).

Conto um exemplo, diretamente da Flip: um dos momentos mais bonitos do evento foi um pequeno concerto oferecido em homenagem ao Paulo Moura, que deixou o mundo mais triste há exatamente um ano, no dia 12 de julho de 2010. Tocaram quatro grandes instrumentistas, parceiros do maestro em vida, na sala onde ele também tocara anos antes, no Teatro Espaço. Cliff Korman no piano, Daniela Spielmann no sax e na clarineta, Katia Preta no trombone e Robertinho Silva na percussão dividiram o palco com a viúva de Paulo Moura, a psicanalista Halina Grynberg, que lançava a biografia “Paulo Moura, um solo brasileiro”, de sua autoria. Comprei o livro ainda antes do show, uma edição maravilhosa que acompanha um CD do mestre em parceria com Andre Sachs e várias participações.

Entre uma música e outra, a viúva lia trechos do livro e contava histórias. Por mais que eu respeitasse a intensidade do que representava para ela aquele momento, de homenagem ao grande homem com quem foi casada por 26 anos, sua vaidade pavoneante e a insistência de querer ser maior que os/as músicos/as e a própria música não me permitiam criar empatia. A falta de empatia virou antipatia declarada quando a viúva desautorizou no palco o Robertinho Silva, um dos grandes da música brasileira e mundial, baterista e percussionista, parceiro não apenas de Paulo Moura, mas também de Milton, Wagner Tiso, George Benson, João Donato, Tom, Gal e Sarah Vaughan, pra citar uns poucos. 

Uma cena colonial, em um casarão do Centro Histórico anterior à abolição, em que a senhora branca, imbuída de autoridade estrutural e de ocasião (por ser branca, mas também por ser a viúva e por ser autora no evento literário), destratou o músico negro que ameaçou falar também, contar uma história vivida por ele próprio com o homenageado, mais de trinta anos antes, quando ela sequer conhecera o marido: “se você falar, eu vou tocar percussão”. Robertinho respondeu com um irônico “sim, senhora”, não em sinal de submissão, mas para evidenciar em que tipo de cenário aquela cena se ia configurando. No fundo, um enorme pôster com o sorriso negro do próprio Paulo.

Terminado o show, não pensei duas vezes: no lugar do autógrafo de Halina sobre o livro que escrevera, fui reverencioso entregar a caneta pro Robertinho, que assinou meu exemplar com alegria. Aqui, mais do que o fetiche, o pedido do autógrafo (ou alterógrafo) foi uma declaração de admiração e respeito, e um posicionamento.


Robertinho nos deu a honra de participar da roda de samba. O também
ilustre Chiquinho da Livraria esteve por lá.

Transferência

Houve história vagamente assemelhada, esta não um caso de alterógrafo, mas de transferência de fetiche. Fui com certa expectativa assistir à mesa intitulada “Pontos de Fuga”, com a argentina Pola Oloixarac e o português nascido em Angola valter hugo mãe. Primeiro por ser uma das poucas mesas da Flip em que eu já havia lido romances dos dois autores, e gostado; segundo porque havia meses que se falava com expectativa na presença dos dois em Paraty, expoentes da nova literatura. E havia a Pola, por mais perverso que isso possa ser quando o assunto que interessa é a literatura, que trazia ainda a expectativa sobre sua beleza. Pola era a sensação da Flip.

A mesa, no entanto, foi do mãe. O português carismático, nome sempre grafado em minúsculas, conseguiu arrebatar a platéia falando com simplicidade e humor de sua própria intimidade, de sua visão da literatura, de seu próximo romance e de sua relação com o Brasil. Tratando sobretudo do tema da “perda” e da “falta”, mãe se emocionou e emocionou o público lembrando da morte do pai e afirmando que “o escritor substitui na literatura aquilo que lhe falta”.

Saí eu próprio arrebatado, encantado com o mãe quando esperava me encantar com a Pola, e decidi pedir o autógrafo dele. Foi a única ocasião em que me dispus a comprar um livro na livraria oficial do evento e entrar na fila em busca de uma assinatura. E não fui o único. O romance novo dele, lançado na própria Flip, foi o único a esgotar nas prateleiras durante o evento, 500 cópias vendidas, duas mil pessoas na fila dos autógrafos.

Alguém se arrisca a decifrar que diabos
rabiscou o mãe?
Mas não entrei na fila apenas pra ter a letra dele no meu exemplar. Decidi, em troca, eu mesmo presenteá-lo com um livro. Lhe ofereci Matita, o bruxo, romance do Paulo César Pinheiro que eu acabara de ler e que muito me lembrara o romance anterior do mãe, o remorso de baltazar serapião. E não tive dúvidas: tasquei na folha de rosto a minha própria dedicatória, de agradecimento de leitor. Entrei na fila dos autógrafos não apenas pra ganhar, mas também pra oferecer um “autógrafo” (neste caso, meu próprio alterógrafo). E saí de lá com um garrancho ilegível escrito em caneta branca sobre a folha de rosto preta de a máquina de fazer espanhóis. Só decifrei ali o meu nome, e deduzi o nome do autor. Que, diga-se, não é nome de batismo. O mãe, na verdade, é batizado Valter Lemos, quem sabe meu parente distante, e escolheu levar a referência maternal no nome de trabalho por acreditar na incondicionalidade da presença materna, e na necessidade de que a literatura seja ela própria incondicional (na relação do autor com sua obra). Acho esse papo piegas e um tanto quanto duvidoso no caso da maternidade, mas gosto da defesa de uma literatura incondicional.


Sobre a maternidade, a propósito, a Pola teve um de seus bons momentos na mesa, quase sempre devidos a pitadas de acidez derramadas sobre o clima de comoção provocado pelo colega. Quando ele afirmou que pensava agora em ser pai, pela primeira vez, chegando aos 40 anos, a argentina comentou que se fosse ela a dizê-lo seria acusada de estar dando declarações do nível de Sex and the city.

É bom que se diga que fui movido aqui, em minha busca pelo autógrafo de v.h.m., pelo arrebatamento, pela fala que me fez emocionar e chorar. Disse coisas interessantes, a Pola. Sobretudo em momentos exteriores à mesa, em que ela nitidamente foi surpreendida pelo rumo da conversa (que prometia ser uma conversa sobre literatura) e acabou intimidada. Fez uma deliciosa provocação ao italiano que desistiu de vir à Flip em “protesto contra o governo brasileiro” pela não extradição do Cesare Batisti. E ainda uma leitura importante, de abrangência latino-americana, da contribuição do Oswald de Andrade, autor homenageado da Festa, ao aproximá-lo do patrício J. L. Borges, pensando a dificuldade dos dois países em dialogar quando muitas vezes falam das mesmas coisas. E apontou para a originalidade de Oswald, quando Borges estava sobejamente centrado num modelo importado de T. S. Eliot.

Desautografia

Falando em Oswald, e voltando aos autógrafos, houve quem tenha apanhado um dos exemplares de O Rei da Vela distribuídos gratuitamente pela Folha de S. Paulo e procurado ansiosamente ao longo do evento por uma oportunidade de encontrar o autor da vez para uma dedicatória personalizada no livro.

E ainda sobre autógrafos que não aconteceram, há o caso daqueles pedidos ao autor errado. A Flip estava especialmente propensa a fatalidades e constrangimentos como esse envolvendo autores e mediadores carecas de meia idade. Eram vários, inclusive o próprio mãe. Vislumbrei, num momento de sonho, uma cena ideal: um rapaz, emocionado com a participação do mãe, porém sem saco pra esperar horas na fila, procura pelo português nas ruas da cidade, o livro sempre debaixo do braço. Avista em uma das ruas de pedra a figura do autor careca, e o aborda com um sorriso e uma caneta. O escritor fica satisfeito com o reconhecimento, também sorri, e só quando toma o livro na mão para começar a escrever é que se dá conta de que não é obra sua.

– Você me desculpe, mas esse livro não é meu.

– Mas você não é o mãe?

– Não, eu sou o Pondé.

E o rapaz vai embora, decepcionado, deixando também decepcionado o mais canastrão dos autores da Flip. Eu não queria falar sobre o Pondé, de quem acho que nem vale a pena comentar, mas vou aproveitá-lo só pra fazer um gancho. O infame colunista da Folha foi convidado pra dividir a mesa com o Miguel Nicolelis, outra atração de grande envergadura da Flip. É evidente que não foi a escolha mais apropriada, e a presença do neurocientista, cuja apresentação resumiu-se a uma breve apresentação dos aspectos mais gerais de seus experimentos geniais, podia ter sido muito melhor aproveitada se tivesse tido a companhia de um provocador das implicações políticas e filosóficas de seu trabalho e seus produtos. Penso, por exemplo, no quão incrível poderia ter sido uma mesa reunindo Nicolelis e Eduardo Viveiros de Castro, ou a Donna Haraway. Pondé não fez nada disso.

Da provocação

Quem o fez, no entanto, em forma de provocação divertidíssima, com todo o respeito que eu tenho ao Nicolelis, foi o grande Zé Celso Martinez, na Macumba Antropófaga que encerrou o evento. Fazendo a ponte entre um dos momentos de maior repercussão da Flip e o texto mais notório do autor homenageado, Zé Celso resgatou do Manifesto Antropofágico a figura já folclórica do Dr. Voronoff, e a fundiu com a do criador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal. Aqui foi o cientista franco-russo, já cantado por Noel e Lamartine, inventor de método nada ortodoxo de rejuvenescimento, quem transplantou glândulas sexuais de macacos em um tetraplégico e o fez levantar e marcar um gol apoteótico, com a camisa da seleção, como Nicolelis espera fazer na abertura da Copa do Mundo de 2014 utilizando um exoesqueleto controlado por estímulos cerebrais. Ciência e mito, aproximados não em menosprezo à ciência, mas em prol do entendimento da história e da narrativa crítica.

Haveria muito mais o que dizer sobre a Flip, é evidente, assim como muito já se disse nos últimos dias. Me esquivo, por ora, de qualquer comentário geral sobre o evento. Eles inevitavelmente surgirão em outros textos, quando eu abordar questões caras à cidade. Alguns temas importantes foram sugeridos no texto que linko aqui e também neste aqui, por gente que como eu também se mudou pra Paraty há pouco. Mas encerro assim mesmo, retomando as dedicatórias, dedicando este post já grande demais ao Carlos e à Ju.

domingo, 1 de maio de 2011

Belo Horizonte em 34 minutos (ou O fim do mundo e o prazer de se perder)

Blogueiro inexperiente que sou, tenho penado pra manter a média de uma postagem por mês. Não que isso seja um problema, até por que eu nunca primei pela quantidade - o que não significa que seja de grande qualidade o que se escreve por aqui. :-)

Abril escapou por pouco de passar em branco, e para garantir a redenção de maio, um mês tão importante, apelarei para o uso de um texto já publicado.

Meu amigo Henrique Milen, colega de trabalho e de paratiadas, é também editor de um ótimo site sobre a capital mineira. Na noite da última quinta-feira, lançou-me por e-mail um desafio: escrever um texto sobre Belo Horizonte em 34 minutos. Foi lá que passei o feriadão da semana santa, e a alma ainda não retornara de todo. Foram dias deliciosos!

Topei a parada e liguei o cronômetro no momento exato em que respondi ao e-mail com o aceite. A contagem terminou registrada na hora de envio do texto definitivo. Não consegui cumprir com o combinado, foram 55 minutos. Mas isso já tá bom demais pra quem vinha escrevendo um textinho por mês.

Gostei do exercício. Procurarei praticá-lo com alguma freqüência. Salvo por algumas repetições de palavras e um ou outro probleminha formal, textos escritos em uma sentada nem sempre perdem para aqueles enrolados por meses.

O Milen já publicou o texto no Ah!Cidade, mas como o assunto tem tudo a ver com o que se tenta pensar por aqui, e como o blog anda pobrinho, recorro à pirataria de mim mesmo (e também da excelente ilustração do cara):

Imagem: Henrique Milen. Técnica mista sobre o labirinto planejado de Belo Horizonte.


Um dos editores deste site me desafia, com ênfase no caráter de urgência, a escrever um texto sobre BH em 34 minutos. Dois problemas, logo de partida: o primeiro é que eu sou um procrastinador compulsivo, e não costumo me dar prazos menores do que 34 dias pra fazer o que quer que seja; o segundo é que eu mal conheço BH, e aprendi nos manuais de redação que a gente deve escrever sobre os assuntos de que entende (pelo menos um pouco). Mas, pensando aqui por não mais que 3,4 segundos, me vêm à cabeça pelo menos 34 livros escritos por gente que não fazia ideia do que estava dizendo (o que não significa que soubessem disso, obviamente). E nem falei das publicações em diários e periódicos!

Estive em BH umas três vezes. Todas visitas muito curtas, todas bastante obscurecidas por mais horas de embriaguez que de sobriedade. BH convida a beber, e essa é apenas a primeira obviedade (de 34?) que eu escrevo sobre a cidade neste excerto. O retorno da última ainda não faz uma semana, e o motivo da visita foi um casamento no dia de São Jorge. Data oportuna, aproveitando o feriadão da Páscoa.

A ignorância deste texto não se resume à absoluta falta de domínio do assunto pelo autor. Ela é o próprio assunto de que aqui se tratará.

Talvez por ser nativo da cidade-maquete, a cidade-modelo das cidades planejadas (preciso explicar de onde estou falando?), a minha relação com os lugares onde aporto é antes de tudo cartográfica. Gosto de visitar cidades desconhecidas com um mapa na mão, tentando visualizar o conjunto urbanístico à medida em que passeio. Nunca tive um mapa na mão em BH. Da história da cidade sei que também foi vítima da mão do urbanista inventor. Mas sempre me hospedei fora dos limites do Contorno, e talvez por isso me pareça um tanto arruaceiro o arruador.

Na última sexta saímos de manhã, eu e dois amigos, em missão de localização de um hotel no centro da cidade, onde tomaríamos um ônibus de turismo com destino ao Inhotim, parte das atividades do casório (que tinha mais convidados brasilienses que belorizontinos). Dos amigos, é bom que se diga, um é nativo da capital mineira (o motorista) e o outro é arquiteto-e-urbanista. O hotel estaria na rua dos Timbiras, alta numeração (o nome é bastante familiar para um antropólogo como eu).

Saímos do bairro Jaraguá com folga, uns 34 minutos antes da hora marcada. Havia ainda um agravante: era sexta-feira santa, e as ruas estavam desertas. A ideia era mesmo chegar com folga.

Encontramos a rua dos Timbiras logo após passar pela praça Raul Soares, que não deixa dúvidas de que estamos em uma cidade planejada sob influência haussmaniana. Nosso primeiro contato com os Timbiras tem por numeração dois mil novecentos e algum coisa. Bom, já que nosso objetivo está ali pelos três mil.


Seguimos mais um pouco, morro acima, e os número vão diminuindo. Fácil! É só fazer o primeiro retorno e voltar pela paralela, uns dois ou três quarteirões, até acertar a numeração. Tomamos a direita, novamente a direita, e já estamos na paralela. Seguimos os tais dois ou três quarteirões e novamente tomamos à direita, para encontrar – é natural – a rua dos Timbiras, ali pelo número três mil e qualquer coisa. Ledo engano. Encontramos Guajajaras, Aimorés, Tamoios e Tupis, e nem sinal de Timbiras. Muitas voltas, e ruas pelas quais passamos quarteirões e quarteirões atrás reaparecem na nossa frente. Pedimos informação, e a informação nunca é segura.

Uma amiga nativa, horas mais tarde, me explica a lógica, tal como ela a entende: em um sentido, as ruas têm nome de estados; no outro, nomes indígenas; finalmente, nomes de inconfidentes. Pergunto onde entram Pedro Álvares Cabral e Gonçalves Dias, e me arrependo por destruir uma cartografia mental tão bem montada. Lá está, pela quarta vez, a Avenida Bias Fortes. Já passamos três vezes pelo obelisco da Praça Sete. Guajajaras, mais uma vez. Não acredito que a Rua Tomas Gonzaga reapareceu na nossa frente, quando passamos por ela há cinco minutos e não me lembro de ter mudado de direção desde então.

O motorista nativo se descabela, não sem alguma vergonha. O co-piloto urbanista confessa estar desorientado – e essa não é uma confissão fácil para um co-piloto urbanista. Eu já não faço ideia de onde estou, e tenho certeza de que as ruas em BH mudam de nome quando assim o desejam.

E começo a gozar uma experiência espacial e urbana inédita. É como estar num sonho, em que a rua São Paulo daqui a pouco vira rua Ouro Preto, e os Tamoios imediatamente transubstanciam-se Carijós. O espaço é absolutamente etéreo quando se está perdido no centro planejado de Belo Horizonte. Só uma coisa é certa: pra onde quer que se olhe, lá no fundo está a serra. A única possibilidade horizontina de localização. Não há referência possível. Se não há certezas sobre o espaço, não pode fazer sentido o tempo. Se estamos perdidos em BH, não estamos atrasados para o ônibus. E as ruas planejadas de BH, em todo caso, já me dão o tipo de experiência que eu espero viver no Inhotim.

Estar perdido em BH é uma verdadeira experiência, e imediatamente me lembro de um filólogo italiano que garante que já não há experiência possível. Tudo, segundo o sujeito, é hoje deixado pra se experimentar depois. A experiência da máquina fotográfica. E me lembro, já que estamos numa cidade planejada, do velho Lévi-Strauss e sua primeira impressão diante da também planejada e então recém-construída Goiânia: uma paisagem bárbara e desumana, implantada no deserto; um sopro monstruoso com a absurda expectativa de que naquela terra brotassem seres humanos.

Talvez nada seja mais moderno que isso: arruinar a experiência presente para construir o futuro. Sinto isso quando compro livros que não lerei agora, ou quando delego escolhas para amanhã: hoje tenho preguiça, mas o eu que serei saberá o que fazer.

Talvez isso tenha algo a ver com a obsessão escatológica contemporânea. Ou não. É possível que desde sempre tenhamos sido obcecados com o fim do mundo. Mas é inegável que pululam teorias apocalípticas e cataclísmicas nesses nossos dias. Criamos cidades para o amanhã ao mesmo tempo em que estamos certos de que ele não virá. Porque estamos com preguiça de resolver os problemas que as nossas vivem hoje.

Passados já mais de 34 minutos me dou conta de que não tenho mesmo nada o que dizer de BH. Mas agora não tenho dúvidas de que BH me disse alguma coisa: poucas experiências são mais intensas que se perder numa cidade – tanto mais em uma cidade planejada para ser pura razão, pura lógica simétrica, mas que jamais poderia escapar ao destino de todas as cidades: virar uma matéria disforme, de percursos infinitos e significados profundos, como um sonho.

E completamente perdido extrapolei em 21 minutos o tempo regulamentar deste desafio.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Uma história para 1º de Abril

1º de abril. Data em que é comemorado, desde 1971, o Dia Mundial pela Conservação dos Centros Históricos. A data rememora o I Seminário Internacional das Nações Unidas para a Conservação dos Centros Históricos e do Patrimônio Arquitetônico Mundial, realizado na Cidade do Panamá, que deu origem à Carta do Panamá (mais conhecida como Declaración del Casco Viejo), assinada por diplomatas, arquitetos e urbanistas de mais de 160 países. A Carta alertava para a importância da preservação do patrimônio arquitetônico e urbanístico dos centros históricos de cidades de todos os países do mundo.

Coincidência ou não, foi justamente em 1971 que o “russo alucinado” Vsesolod Y. Semitchasny rodou um de seus filmes mais celebrados – e também mais rejeitados: No leito da Rua Direita a História segue o seu curso. No esquecido clássico de Semitchasny é justamente a figura do ‘Centro Histórico’ que aparece como alegoria da História – a História com ‘H’ maiúsculo, essa invenção do Ocidente moderno.

Cartaz original do filme, de 1971.
O cenário do filme é o Centro Histórico da fictícia Nova Elêusis, de localização e história incertas, mas que faz alusão à antiga cidade grega onde teria nascido o poeta Museu. Cenário, no filme em questão, é um elemento fílmico de caráter um tanto distinto daquele que assume historicamente não apenas no cinema, mas também no teatro. Aqui, embora as ações se desenrolem sempre no universo de Nova Elêusis, as tomadas foram realizadas em bairros históricos de oito cidades distintas e de características muito diversas: foram elas a Nizhny Novgorod russa, cidade natal do cineasta; na Itália, a monumental Roma e a colorida ilha veneziana de Burano; a gótica Stralsund, na Alemanha; a milenar e eclética Cuzco, no Peru; o Rio de Janeiro e Paraty, no Brasil; e a mesma Cidade do Panamá onde aconteceu o Seminário da Unesco.

Mas apesar do que pode dar a entender o tour de force cenográfico do experimentalista Semitchasny, não é o espaço que é aqui posto em questão, mas a representação do tempo. O Centro Histórico de Nova Elêusis, ela própria fictícia, aparece como alegoria da História, esta materialização do desejo do homem moderno pelo poder sobre o Tempo – que só pode acontecer pela criação de ficções, sejam as registradas nos livros, sejam as edificadas nas cidades.

Como num road movie às avessas, os personagens de No leito da Rua Direita... viajam o mundo sem sair do lugar. Os personagens estão sempre em Nova Elêusis; mas Nova Elêusis, a cada cena (às vezes, em planos diferentes de uma mesma cena) é sempre uma cidade diferente. O escritor Ítalo Calvino nunca escondeu sua admiração por Semitchasny, e certamente não foi por coincidência que escreveu As Cidades Invisíveis em 1972, apenas um ano após o lançamento do filme.

Cartaz para a Mostra do Novo Cinema
Russo, em 1973.
Ao alternar indiscriminadamente as locações onde foram filmados os diálogos desconexos do filme, o mestre russo cria a imagem de uma História absolutamente fluida e incerta, onde a grandiosidade arquitetônica opõe-se à fragilidade dos personagens. Mas, não se enganem, a espacialidade não é posta em questão. O filme é uma ode à localidade, ao pertencimento comunitário ao lugar como reduto da memória, e não da História com ambições universais e deslocalizadas.

Se os personagens principais do filme (sempre burgueses ambiciosos e aparentemente seguros – mas só nas aparências, e o diretor é muito hábil na arte de demonstrar sua verdadeira miséria), como o arquiteto Andropov e sua jovem noiva Julia, alternam entre as diversas locações, os personagens secundários, os figurantes, estão sempre nos mesmos lugares. A cada vez que uma cidade aparece, lá estão, em segundo plano, seus mesmos habitantes – habitantes diferentes para cada locação.

O Centro Histórico de Nova Elêusis é uma ficção, e tanto faz que história seja contada, que signos sejam mobilizados para contá-la: o que importa é quem a escreve e quem os manipula, e os protagonistas desta disputa estão muito claramente definidos no filme.

A escolha das duas locações brasileiras para o filme não foi por acaso. Semitchasny esteve mais de uma vez no país, e era um declarado admirador do filme Rio 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos. Há uma nítida influência do filme brasileiro em No leito da Rua Direita... Em ambas as obras suas verdadeiras protagonistas são as cidades, mais do que os personagens: o Rio, no filme de Nelson; Nova Elêusis, para o autor de Porrete/Demência. Semitchasny esteve em Paraty a convite de Nelson, que naquele 1971 rodava no município o longa Como era gostoso o meu francês, depois de ter filmado um ano antes, na mesma cidade, Azyllo Muito Louco.

Mas essa não foi a primeira visita do russo ao Brasil. Semitchasny foi assistente de Orson Welles, e foi este quem o trouxe pela primeira vez ao país, em sua temporada por aqui em 1942. Voltou outras vezes, e teria rodado algumas cenas do clássico Porrete/Demência em Belo Horizonte, em 1959.

Assisti ao raro filme de Semitchasny numa cópia em VHS que me foi emprestada por um velho morador de Paraty, Seu Benedito, ele próprio figurante nas cenas locais. Fiquei impressionado com a força com que o filme alegoriza um aspecto da Paraty contemporânea que dificilmente o diretor teria percebido no princípio dos anos 70. Naquela época, a cidade ainda apenas iniciava o processo que a transformou em um dos principais destinos turísticos do Brasil: 1971 é justamente o ano de inauguração do trecho da Estrada Rio-Santos (BR 101, a famosa ‘Brioi’) que facilitaria enormemente o acesso por terra a Paraty.

Hoje, como na tese que o filme de Semitchasny parece defender, o Centro Histórico de Paraty é uma ficção alegórica que sustenta uma versão oficial e raramente contestada da história da cidade. Se o bairro parece preservar ou conservar o patrimônio arquitetônico da ‘Paraty histórica’, a cidade-cenário de sua própria narrativa oficial (centrada nos ciclos do ouro e da cana, com a decadência econômica que a isolou após a abertura de novas rotas portuárias e a abolição da escravidão), as fotografias e os relatos dos moradores mais velhos não deixam dúvidas de que se trata antes de uma reconstrução.

O cenário do Centro Histórico paratiense, antes da descoberta pelo turismo, era antes o de uma cidade decadente e abandonada. Casarões condenados, carcomidos pelo tempo; quarteirões inteiros feitos apenas de escombros; mas, mais importante que isso tudo, um grande número de casas ecléticas, produto da arquitetura de muitos e distintos períodos. Estas, foram quase todas demolidas (resta uma, solitária, que em breve será retratada e devidamente apresentada neste humilde blog); aqueles – todos os espaços vazios e prédios irrecuperáveis –, foram transformados em lindos e impecáveis 'casarões coloniais', que via de regra servem de abrigo para a) lojinhas para turistas ou b) residência para ricos empresários paulistanos ou europeus.

O mais grave não é a disneylandização do Shopping Histórico, digo, do Centro Histórico; é que suas edificações sirvam de lastro para a manutenção de uma história que apenas preserva e conserva a concentração dos recursos (materiais e simbólicos) nas mãos de uma elite que reúne a velha aristocracia das 'famílias tradicionais de Paraty' e alguns oportunistas. É preciso abrir a história da cidade, preenchê-la com as memórias de seus moradores – não apenas os que ostentam sobrenomes Históricos.

A Carta do Panamá apontava ainda para um aspecto fundamental, mas muitas vezes esquecido, do trabalho de conservação dos Centros Históricos: a musealização do patrimônio a céu aberto. Há muitos lugares 'históricos' no mundo – Semitchasny escolheu oito para seu filme. São históricos não porque têm história (é evidente que todos os lugares o têm); mas porque são espaços privilegiados para a qualificação da memória. Mas para tanto é preciso que sejam também qualificados: sinalizados, discutidos, postos em dúvida.

Vsesolod Y. Semitchasny
A repercussão negativa dos filmes de Semitchasny talvez devesse mais a sua personalidade e conduta que à qualidade da obra. Sua fama era de “louco alucinado” (donde o apelido de “russo alucinado”, que sempre o acompanhou), e mesmo Stanley Kubrick, seu amigo e admirador, referia-se a ele como um “doidão”. O cineasta americano chegou a afirmar ter se inspirado em Semitchasny para construir com Jack Nicholson o personagem principal de O Iluminado. Seu trabalho foi posto em dúvida, assim como sua reputação. Hoje, no entanto, praticamente esquecido, não há o que se por em dúvida.

Eis o mais severo dos efeitos do esquecimento: a falência crítica. Neste 1º de abril, em que se celebra pela trigésima vez o Dia Mundial pela Conservação dos Centros Históricos, vivemos também no Brasil, mais do que nunca, um momento crucial na luta pelo direito à memória. Não é a História (esta ficção nacionalista), mas a memória o que está em jogo quando lutamos pelo Direito à Verdade no desarquivamento da história recente da ditadura no Brasil. Este texto, incerto e disperso, é minha tentativa de contribuição neste 1º de abril à Terceira edição da blogagem coletiva pela abertura dos arquivos secretos da ditadura militar.

Encerro com alguns links sobre o assunto:

quarta-feira, 16 de março de 2011

Águas de março


Bicho gente e bicho cão, atônitos, observam a inundação
da Rua dos Sabiás

Paraty, manhã de 16 de março de 2011. Chove forte na Serra da Bocaina e os rios enchem.
O rio Perequê-Açu, que assim como o Rio Mateus Nunes corta a cidade de Paraty, já transbordou em alguns pontos, especialmente no bairro do Caborê.
Não sei como está o Mateus Nunes, que fica do outro lado da cidade. Minha casa fica a menos de 100 metros da margem sul do Perequê-Açu. O Caborê fica na margem norte, e foi construído numa cota mais baixa que a dos bairros da margem sul. É um bairro de classe média, de grandes casas de edificação recente. Muitas ruas ainda não foram asfaltadas. Ano passado foi um dos mais afetados pelas enchentes do reveillón.

A previsão é de sol nos próximos dias. Tomara que dê pra secar parte do prejuízo.
O rio Perequê-Açu, no limite das barreiras de contenção
Segundo o vice-prefeito, que encontrei vistoriando a ponte nova sobre o Perequê-Açu, estão alagados os bairros do Condado e do Pantanal, próximos à cidade, localizados entre a BR-101 e a Serra da Bocaina.
O momento crítico é depois das 11 horas, quando a maré deve subir e encontrar os rios cheios. Os rios são fundamentais para absorver a água da maré. Quando já estão cheios e recebem mais água vindo no sentido contrário, do mar, a tendência é de transbordamento.
Na cidade, nesse momento, chove apenas uma garoa fina. Mas o problema não é aqui, é nas nascentes na Serra. A esperança é de que pare de chover lá em cima, e o volume de água nos rios diminua um pouco antes que a maré suba. Quando aconteceu a última grande enchente, nas primeiras horas do dia 1º de janeiro, sequer chovia na cidade. Eu ainda não estava aqui.
Por enquanto, faço o que é possível: trago pra cima o máximo de coisas possível. E agora vou sair rapidinho pra comprar umas galochas.
A entrada da minha casa, alagada pela chuva
(isso sempre acontece, e não tem nada a ver
com a cheia do rio)
Principal ponto de transbordamento do Perequê-Açu














quinta-feira, 3 de março de 2011

Carnavida


Nas imediações imediatas do meu endereço o couro come na bateria e inunda todos os cômodos da casa com a vibração do carnaval. Depois de um dia atípico de frio melancólico, os sambas carnavalizados executados tão pertinho daqui me dão um novo alento. Tudo bem que a bateria não saia do feijão com arroz e o puxador mereça como maior elogio o “esforço”. Carnaval não é só isso – uma boa banda, a música bem executada, torna tudo mais bonito –, mas o espírito é esse. Um conjunto de percussão nas mãos de praticamente qualquer grupo de foliões (o limite fica mesmo bem baixo nessa época do ano) faz um bloco no mínimo suficiente pra deixar todo mundo contente.

Fui até lá pra conferir. Com o singelo nome de Os Paulos, o grupo ensaiava os sambas e marchinhas de seu desfile no barracão de fundos do posto de gasolina que costumo usar como referência da localização da minha rua. Com a nota derradeira do surdo, que agora só deve voltar a soar com o bloco na rua, cheguei em casa com vontade de escrever sobre o carnaval. Sem floreios ou sociologismos, o carnaval como eu o tenho vivido. Tem tempo que não atualizo o blog, e se é pra manter o hábito de traçar algumas linhas por aqui eu não poderia deixar passar a ocasião.

Fato é que sou apaixonado pelo carnaval, e essa não é uma paixão que vem da infância. Não de forma linear, pelo menos. Não amo o carnaval porque passei os melhores momentos da minha infância brincando nos blocos, ou porque foi no baile de algum clube que dei meu primeiro beijo ou porque venho de uma família de foliões assíduos que me ensinaram desde cedo o gosto pela festa de momo, a arte da concepção de fantasias, o caráter irreverente e muitas vezes político das marchinhas, dos frevos e de tantas músicas que embalam o feriado. Muitos carnavalófilos devem tirar explicações desse naipe pra justificar suas obsessões com a festa. Pra mim não vale nenhuma delas, o que não me isenta de recorrer a alguns psicologismos baratos quando me pergunto como foi que vim a cair de amores por esse evento, depois de chegar a odiá-lo.

A expressão no rosto não esconde a alegria 
diante dos cruzeiros que entraram na caixinha.
Essa foto aí do lado ilustra o episódio mais remoto de vivência carnavalesca que minha memória foi capaz de reter, do tempo em que eu ainda era um filhote de vara-pau. Não sei precisar o ano, mas foi num baile de carnaval do Iate Clube de Brasília. Foi minha mãe quem me levou, e a idéia da fantasia foi dela. Me vesti de menino de rua e repetia a mesma ladainha a todos os adultos e adultas que levavam suas crianças ao clube: “colabore com a caixinha!” Não me lembro do baile, das outras crianças, de confete, serpentina ou música. Tudo o que me lembro é de ter tentado ser menino de rua por um dia – tentado acreditar que eu era, e tentado convencer os outros, os adultos. As moedas que eu podia ganhar na caixinha, moedas de verdade, dependiam do sucesso do meu convencimento. É uma lembrança de carnaval, mas não é uma lembrança de festa. É uma lembrança de esforço, e a memória dessa brincadeira aparece pra mim, também, como a lembrança do primeiro trabalho. Um trabalho sem patrão, mas que me rendeu a primeira recompensa financeira. Não uma mesada automática, sem qualquer justificativa; mas a recompensa pelo meu trabalho, pelo meu convencimento. Hoje eu penso que não precisava muito pra convencer uma madame qualquer do Iate Clube a achar graça num molequinho branco e loiro brincando de ser mendigo. Mas pra mim a história era outra, eu ficava ansioso a cada vez que abordava um adulto e recebi aqueles cruzeiros com real júbilo, algo muito maior do que ganhar uns trocados mensais de pai e mãe. Foram os primeiros cruzeiros que eu realmente mereci ganhar!

Depois disso, é bem verdade, ainda tive alguns momentos memoráveis nos carnavais infantis. O que mais me encanta foi o ano em que me fantasiei de sanduíche, talvez a primeira fantasia de minha própria concepção. Aproveitando que ainda era um rapazote de medidas pouco expressivas, comprei a maior baguete da padaria, cortei-a transversalmente, pedi a minha tia que me ajudasse a envernizá-la, colei cada banda num papelão cortado em forma de alface, pintado de verde com uma rodela de tomate vermelho no meio, e descolei com minha avó uma roupa cor-de-salsicha. Depois amarrei duas alças nas alfaces e vesti o pão como aqueles “outdoors” ambulantes anunciam com cartazes pendurados às costas que compram ouro, dólares y otras cositas más.

Mas veio a adolescência, o rock e aqueles impulsos irresistíveis de rebeldia que quando surgem quase sempre vêm mal direcionados. Que nunca morra a rebeldia, mas que seja regulada a mira, o foco. Eu devia ter uns dez ou onze anos quando resolvi que não era legal ser terceiro-mundista. Tinha uns amigos europeus, outros que achavam que eram, e resolvi entrar na onda também. Nada mais fácil que se revoltar contra o próprio lugar. Só ouvia música gringa, aumentei a importância do fato hoje irrelevante de ter nascido no Velho Mundo – um golpe quase-acidental do destino –, torcia contra a seleção, incorporei o discurso-ladainha racista e classista da “ignorância” do povo brasileiro e das “vantagens civilizatórias” dos Europeus, entre outras babaquices. Tudo isso, sabe-se lá como, eu dava um jeito de encaixar numa perspectiva de mundo que se achava “esquerdista”. E nesse caldo todo o carnaval virou algo como “baderna de gente inculta, incivilizada e despolitizada que não sabe o que é boa música”. Exatamente o tipo de discurso que todos os anos, mais ou menos por essa época, eu ouço e leio nos mais diversos lugares. Outro dia li um comentário na internet, numa matéria do Correio sobre o desfile do Suvaco da Asa, retomando o eterno clichê da comparação do carnaval com o “pão e circo” romano. Dizia qualquer coisa como “o povo fica nessa baderna enquanto os corruptos roubam o seu dinheiro”, como se uma coisa tivesse algo a ver com a outra.

Se o carnaval foi vilanizado nessa fase lamentável de distanciamento do próprio lugar, ele precisou de alguns anos pra voltar com tudo como um dos fatores fundamentais de reaproximação e de realinhamento com pensamento e ação críticos e uma perspectiva centrada na localidade. A primeira descolonização, ainda antes da investida carnavalesca, veio pela música. O rock era incrível e eu tentava me distanciar do que se distanciava dele; mas o samba de Cartola, o choro de Ernesto Nazareth e Pixinguinha e o baião de Luiz Gonzaga voltavam ali pelos meus catorze anos como investidas irresistíveis. E foram abrindo portas. Antes de qualquer outra coisa, foi um novo lado da minha casa que eu redescobri: as estantes que ocupavam toda uma parede da sala com a coleção de discos do meu padrasto. Mas se era o apelo “popular-erudito”, que eu via nesses clássicos pra fazê-los encaixar numa leitura estética absolutamente restrita, o que me fez mergulhar nos volumes nacionais da discoteca de casa, aos poucos as barreiras e limites foram sendo empurrados e derrubados, e o caminho se tornou sem volta. Fui descobrindo cada vez mais paixões e cada vez mais me apaixonando pela música brasileira, que por sua vez puxou a música latino-americana, e logo logo o mundo inteiro aparecia como produtor de boa música, tornando-se muito maior que o Reino Unido e Seattle.

E aí veio o carnaval. E a primeira sedução não precisou de muito. Foi ainda em Brasília, e seu tão mal afamado carnaval. Mas pra quem não tinha nada e não sabia de nada, o Galinho da Madrugada e o Pacotão foram experiências revolucionárias. Naquela época eu já não escondia o amor pelo samba, mas tudo se transformou – para citar Paulinho – quando vi o ritmo tomando as ruas de Brasília – as quadras, pra ficar num plano ainda mais carnavalesco. E ele vinha acompanhado de vias interditadas para carros, os pedestres despreocupados; pais de família travestidos, crianças brincando livres na cidade, fantasias de todos os tipos, uma multidão colorida. Brasília mais viva do que eu jamais a conhecera. Aquilo era, antes de qualquer outra coisa, uma experiência estética maravilhosa. A cidade onde eu crescera, tantas vezes taxada de morta e hostil, um lugar onde supostamente não há gente nas ruas, de repente tomada por uma massa de pessoas alegres. Foi emocionante!

O Céu na Terra, em Santa Teresa, no pré-carnaval de 2011
E eu, que então era cheio de travas, me joguei na bagunça e fui inoculado pelo vírus do carnaval. E veio o Rio de Janeiro. Eu já sabia, porque já era notícia, que a folia carioca era maior que o sambódromo. Eram mesmo os blocos de rua que eu queria. E fui feliz! Aquilo tudo era muito maior e intenso do que o que eu vira em Brasília. E me lembrei das histórias que meu avô contava dos carnavais de seu tempo no Rio, e o bonde, e as brincadeiras, e as fantasias, e foi muito bom sentir, ainda que tardiamente, que eu compartilhava aquilo com ele. E amei o Rio mais do que nunca.

E veio Oruro, o carnaval maravilha boliviano. Nem me dei conta de que minha visita à cidade coincidiria com a festa. Foi uma coincidência fantástica. 
Diablo orureño. Essa eu tive que roubar no
gúgol, porque não levei câmera pra Bolívia
Cheguei a Oruro na véspera do carnaval. Pela ruas da cidade, todo tipo de gente trabalhava em enfeitá-la. O trajeto dos desfiles ia ganhando o equipamento das arquibancadas. E as crianças já se divertiam com os balões cheios d’água, pra desespero de turistas desavisados. A primeira coisa que fiz foi vestir a capa de chuva e me armar dos meus próprios balões. Entendi de cara o júbilo das crianças naquele simulacro úmido e divertido de uma batalha campal. O carnaval de Oruro, patrimônio imaterial da humanidade, com tantas diferenças e uma simbologia tão distante dos carnavais brasileiros, me fez sentir mais próximo do mundo andino que nunca. O fundamento religioso é sempre evidenciado por lá. Antes de qualquer outra coisa, reverencia-se à Pachamama e ao Tio Supay. Bebendo vorazmente cerveja, álcool de cozinha ou chuflay (a mistura da terrível singani boliviana com sprite), fantasiados de diabos e dançando a diablada, os orureños e camponeses de todo o território andino (que viajam à cidade pra pedir fartura à Pachamama) nunca perdem de vista a dimensão sagrada da embriaguez profana. A ch’alla, com que brindam e saúdam os próximos e os distantes, é tão profana quanto sagrada. A Virgem do Socavón divide o terreno festivo com os sacrifícios de animais e a cerveja que se derrama no chão, como aqui fazemos “para o santo”. E toda essa mistura de pachamama com catolicismo com festa com as fantasias mais coloridas que já vi com balões de água jogados por crianças nas ruas com música por toda a parte com bebedeira e tudo o mais foi como ver uma imagem contundente de que o Rio é Oruro, Oruro é Recife, e meu lugar é a América Latina tanto quanto o Brasil ou Brasília.

Olinda!
E vieram Olinda e Recife, e toda essa história se encaminhou para um desfecho urobórico na carnavalização da minha brasilianidade, do meu pan-latino-americanismo. Não há escala que dê conta de descrever a grandiosidade daquilo. No carnaval da conurbis pernambucana há lugar para tudo: para o Rio, para Brasília, para os Andes... Estar em Olinda entre o sábado de Zé Pereira e a quarta-feira de cinzas é como entrar em outra dimensão, um mundo paralelo não apenas de fantasias, mas de uma intensa fantasia onírica. É experiência transcendental, e o catalisador fundamental não é o álcool. O álcool tem seu lugar, é claro, sobretudo a cerveja que refresca o calor brutal. Mas o carnaval pernambucano é muito mais que uma festa regada a cachaça (que ali é bebida enlatada!). Nas ladeiras de Olinda e nas ruas do Recife Antigo encontrei na festa de Momo a intensidade de uma experiência religiosa. Religiosidade, diga-se, presente ali como em Oruro, sobretudo nos maracatus que produzem efeitos mágicos, em especial na Noite dos Tambores Silenciosos. Mas também uma religiosidade minha, uma religiosidade profana, um culto extático à história dos povos latino-americanos, que em Recife e Olinda, pelo menos uma semana por ano, tomam as ruas e afirmam sua potência soberana; um ritual anárquico – anarquista, ainda mais apropriado – encenado para lembrar que todo poder é frágil.

E a serpente (M’boitatá, Quetzalcóatl?) finalmente mordeu o rabo com o Suvaco da Asa. Não participei das primeiras edições do bloco, criado em 2006 por pernambucanas e pernambucanos radicados em Brasília. Só fui conhecê-lo às vésperas de minha primeira viagem ao carnaval de Recife, em 2009, no empenho de ir entrando no clima de uma folia de que eu quase nada sabia. Frevo pra mim era As Vassourinhas, e maracatu eu só conhecia em suas versões manguebeat ou naqueles movimentos da burguesia hippie brasiliense. Aquele (meu) primeiro desfile foi decisivo – me deu a chave para entrar com o pé certo na carnavalândia olindense. E a sagração completa veio logo depois, quando voltando a Brasília eu descobri por um golpe do acaso que uma das fundadoras do bloco vinha a ser minha prima – mapeamento que realizamos sem esforço, na mesa do bar onde acabáramos de nos conhecer, usando os conhecimentos genealógicos partilhados por todos os detentores de sobrenomes quatrocentões de Pernambuco, por mais distantes que sejam de suas famílias, como eu era. E assim, de uma seqüência de golpes carnavalescos, refiz os laços com toda a minha história, da família aristocrática de Camaragibe à luta anticolonial.

Essa história tem lugar ainda pra muitos capítulos e epílogos, a começar pela vida nova em Paraty, cidade festiva, dona de uma longa tradição carnavalesca, de bailes, fanfarras e blocos de mascarados. Por aqui, bonecos e máscaras enfeitando os casarões e os ensaios diários das baterias denunciam que o carnaval já inunda o espírito local. Mais, só posso dizer após as cinzas, quando começa a apuração.