sexta-feira, 1 de abril de 2011

Uma história para 1º de Abril

1º de abril. Data em que é comemorado, desde 1971, o Dia Mundial pela Conservação dos Centros Históricos. A data rememora o I Seminário Internacional das Nações Unidas para a Conservação dos Centros Históricos e do Patrimônio Arquitetônico Mundial, realizado na Cidade do Panamá, que deu origem à Carta do Panamá (mais conhecida como Declaración del Casco Viejo), assinada por diplomatas, arquitetos e urbanistas de mais de 160 países. A Carta alertava para a importância da preservação do patrimônio arquitetônico e urbanístico dos centros históricos de cidades de todos os países do mundo.

Coincidência ou não, foi justamente em 1971 que o “russo alucinado” Vsesolod Y. Semitchasny rodou um de seus filmes mais celebrados – e também mais rejeitados: No leito da Rua Direita a História segue o seu curso. No esquecido clássico de Semitchasny é justamente a figura do ‘Centro Histórico’ que aparece como alegoria da História – a História com ‘H’ maiúsculo, essa invenção do Ocidente moderno.

Cartaz original do filme, de 1971.
O cenário do filme é o Centro Histórico da fictícia Nova Elêusis, de localização e história incertas, mas que faz alusão à antiga cidade grega onde teria nascido o poeta Museu. Cenário, no filme em questão, é um elemento fílmico de caráter um tanto distinto daquele que assume historicamente não apenas no cinema, mas também no teatro. Aqui, embora as ações se desenrolem sempre no universo de Nova Elêusis, as tomadas foram realizadas em bairros históricos de oito cidades distintas e de características muito diversas: foram elas a Nizhny Novgorod russa, cidade natal do cineasta; na Itália, a monumental Roma e a colorida ilha veneziana de Burano; a gótica Stralsund, na Alemanha; a milenar e eclética Cuzco, no Peru; o Rio de Janeiro e Paraty, no Brasil; e a mesma Cidade do Panamá onde aconteceu o Seminário da Unesco.

Mas apesar do que pode dar a entender o tour de force cenográfico do experimentalista Semitchasny, não é o espaço que é aqui posto em questão, mas a representação do tempo. O Centro Histórico de Nova Elêusis, ela própria fictícia, aparece como alegoria da História, esta materialização do desejo do homem moderno pelo poder sobre o Tempo – que só pode acontecer pela criação de ficções, sejam as registradas nos livros, sejam as edificadas nas cidades.

Como num road movie às avessas, os personagens de No leito da Rua Direita... viajam o mundo sem sair do lugar. Os personagens estão sempre em Nova Elêusis; mas Nova Elêusis, a cada cena (às vezes, em planos diferentes de uma mesma cena) é sempre uma cidade diferente. O escritor Ítalo Calvino nunca escondeu sua admiração por Semitchasny, e certamente não foi por coincidência que escreveu As Cidades Invisíveis em 1972, apenas um ano após o lançamento do filme.

Cartaz para a Mostra do Novo Cinema
Russo, em 1973.
Ao alternar indiscriminadamente as locações onde foram filmados os diálogos desconexos do filme, o mestre russo cria a imagem de uma História absolutamente fluida e incerta, onde a grandiosidade arquitetônica opõe-se à fragilidade dos personagens. Mas, não se enganem, a espacialidade não é posta em questão. O filme é uma ode à localidade, ao pertencimento comunitário ao lugar como reduto da memória, e não da História com ambições universais e deslocalizadas.

Se os personagens principais do filme (sempre burgueses ambiciosos e aparentemente seguros – mas só nas aparências, e o diretor é muito hábil na arte de demonstrar sua verdadeira miséria), como o arquiteto Andropov e sua jovem noiva Julia, alternam entre as diversas locações, os personagens secundários, os figurantes, estão sempre nos mesmos lugares. A cada vez que uma cidade aparece, lá estão, em segundo plano, seus mesmos habitantes – habitantes diferentes para cada locação.

O Centro Histórico de Nova Elêusis é uma ficção, e tanto faz que história seja contada, que signos sejam mobilizados para contá-la: o que importa é quem a escreve e quem os manipula, e os protagonistas desta disputa estão muito claramente definidos no filme.

A escolha das duas locações brasileiras para o filme não foi por acaso. Semitchasny esteve mais de uma vez no país, e era um declarado admirador do filme Rio 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos. Há uma nítida influência do filme brasileiro em No leito da Rua Direita... Em ambas as obras suas verdadeiras protagonistas são as cidades, mais do que os personagens: o Rio, no filme de Nelson; Nova Elêusis, para o autor de Porrete/Demência. Semitchasny esteve em Paraty a convite de Nelson, que naquele 1971 rodava no município o longa Como era gostoso o meu francês, depois de ter filmado um ano antes, na mesma cidade, Azyllo Muito Louco.

Mas essa não foi a primeira visita do russo ao Brasil. Semitchasny foi assistente de Orson Welles, e foi este quem o trouxe pela primeira vez ao país, em sua temporada por aqui em 1942. Voltou outras vezes, e teria rodado algumas cenas do clássico Porrete/Demência em Belo Horizonte, em 1959.

Assisti ao raro filme de Semitchasny numa cópia em VHS que me foi emprestada por um velho morador de Paraty, Seu Benedito, ele próprio figurante nas cenas locais. Fiquei impressionado com a força com que o filme alegoriza um aspecto da Paraty contemporânea que dificilmente o diretor teria percebido no princípio dos anos 70. Naquela época, a cidade ainda apenas iniciava o processo que a transformou em um dos principais destinos turísticos do Brasil: 1971 é justamente o ano de inauguração do trecho da Estrada Rio-Santos (BR 101, a famosa ‘Brioi’) que facilitaria enormemente o acesso por terra a Paraty.

Hoje, como na tese que o filme de Semitchasny parece defender, o Centro Histórico de Paraty é uma ficção alegórica que sustenta uma versão oficial e raramente contestada da história da cidade. Se o bairro parece preservar ou conservar o patrimônio arquitetônico da ‘Paraty histórica’, a cidade-cenário de sua própria narrativa oficial (centrada nos ciclos do ouro e da cana, com a decadência econômica que a isolou após a abertura de novas rotas portuárias e a abolição da escravidão), as fotografias e os relatos dos moradores mais velhos não deixam dúvidas de que se trata antes de uma reconstrução.

O cenário do Centro Histórico paratiense, antes da descoberta pelo turismo, era antes o de uma cidade decadente e abandonada. Casarões condenados, carcomidos pelo tempo; quarteirões inteiros feitos apenas de escombros; mas, mais importante que isso tudo, um grande número de casas ecléticas, produto da arquitetura de muitos e distintos períodos. Estas, foram quase todas demolidas (resta uma, solitária, que em breve será retratada e devidamente apresentada neste humilde blog); aqueles – todos os espaços vazios e prédios irrecuperáveis –, foram transformados em lindos e impecáveis 'casarões coloniais', que via de regra servem de abrigo para a) lojinhas para turistas ou b) residência para ricos empresários paulistanos ou europeus.

O mais grave não é a disneylandização do Shopping Histórico, digo, do Centro Histórico; é que suas edificações sirvam de lastro para a manutenção de uma história que apenas preserva e conserva a concentração dos recursos (materiais e simbólicos) nas mãos de uma elite que reúne a velha aristocracia das 'famílias tradicionais de Paraty' e alguns oportunistas. É preciso abrir a história da cidade, preenchê-la com as memórias de seus moradores – não apenas os que ostentam sobrenomes Históricos.

A Carta do Panamá apontava ainda para um aspecto fundamental, mas muitas vezes esquecido, do trabalho de conservação dos Centros Históricos: a musealização do patrimônio a céu aberto. Há muitos lugares 'históricos' no mundo – Semitchasny escolheu oito para seu filme. São históricos não porque têm história (é evidente que todos os lugares o têm); mas porque são espaços privilegiados para a qualificação da memória. Mas para tanto é preciso que sejam também qualificados: sinalizados, discutidos, postos em dúvida.

Vsesolod Y. Semitchasny
A repercussão negativa dos filmes de Semitchasny talvez devesse mais a sua personalidade e conduta que à qualidade da obra. Sua fama era de “louco alucinado” (donde o apelido de “russo alucinado”, que sempre o acompanhou), e mesmo Stanley Kubrick, seu amigo e admirador, referia-se a ele como um “doidão”. O cineasta americano chegou a afirmar ter se inspirado em Semitchasny para construir com Jack Nicholson o personagem principal de O Iluminado. Seu trabalho foi posto em dúvida, assim como sua reputação. Hoje, no entanto, praticamente esquecido, não há o que se por em dúvida.

Eis o mais severo dos efeitos do esquecimento: a falência crítica. Neste 1º de abril, em que se celebra pela trigésima vez o Dia Mundial pela Conservação dos Centros Históricos, vivemos também no Brasil, mais do que nunca, um momento crucial na luta pelo direito à memória. Não é a História (esta ficção nacionalista), mas a memória o que está em jogo quando lutamos pelo Direito à Verdade no desarquivamento da história recente da ditadura no Brasil. Este texto, incerto e disperso, é minha tentativa de contribuição neste 1º de abril à Terceira edição da blogagem coletiva pela abertura dos arquivos secretos da ditadura militar.

Encerro com alguns links sobre o assunto: