quinta-feira, 21 de novembro de 2013

República dos Performers - Contemplando o vinho derramado numa sexta a seco no Eixão

Numa noite primaveril de sexta-feira, a classe artística brasiliense se reuniu para protestar contra a federalização do Museu da República, obra tardia do velho Niemeyer também conhecida como "estrela da morte" e "ovo da esplanada". 

O evento foi patrocinado pelo maior interessado na conservação do museu sob a gestão do Governo do Distrito Federal: o atual diretor. Wagner Barja, bastante respeitado e apoiado pelos artistas locais, supostamente grande conhecedor da arte produzida no Planalto Central, quer manter o museu fora do jugo do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), e de quebra manter o emprego.

Como estímulo à presença de participantes no ato (sabedores ou não do que se passava), ofereceu-se uma exposição de obras do acervo do museu, basicamente de artistas brasilienses e goianos, bem montada, com bons trabalhos, que permanece aberta por um bom tempo, e a boa e velha vernissage com coquetel. Apareceu bastante gente. Como oferta adicional, território livre para performers em geral.

Do lado de fora, camelôs vendiam cerveja enlatada, que a administração do museu amistosamente permitia ser levada para dentro, sem restrições. Entrei na sala de exibição com uma bolsa térmica, bem abastecida, com certo receio de que pudesse ser barrado, mas não apenas não o fui como fui também confundido por alguns presentes com mais um performer.

Não se sabe se havia alguma conceituação bem fundamentada por trás, mas alguns dos presentes eram abordados por um mendigo bêbado, bastante maltrapilho, que ia direto ao ponto e depois partia sem esperar a resposta: "O mundo tá acabando, o que você vai levar?"

A atriz Adriana se preparava para iniciar sua demonstração, acompanhada por mais dois atores, quando outra senhora anunciou: "Vai começar a performance do Dudu lá fora, no sinal". A maioria do pessoal preferiu prestigiar o trabalho do trio no museu. Vestindo roupas amarelas, os três saíram desfilando pelo grande salão superior do museu, em meio às obras, cada um para um lado, sem rumo definido: o primeiro saiu pedalando uma bicicleta, o segundo puxando um carrinho de feira, a terceira apenas andando a esmo. Em comum, cada um levava uma caixa de som com barulhos de água e passarinhos. Não demorou para que outros ciclistas  - até onde se sabe, sem qualquer relação com a performance - começassem a aparecer pela sala. Um deles pedalava uma bicicleta que era um pedaço de pau, reto como uma viga, com duas rodas abaixo, aparentemente bastante desconfortável. Houve quem lamentasse ter deixado a própria bicicleta amarrada a um poste lá embaixo.

Diferentemente de muitos museus mundo afora, as fotos estavam absolutamente liberadas e eram abundantes. Um grupo de pessoas, incluindo crianças, espalhava umas centenas - talvez uns milhares - de tampinhas de garrafa pet pelo chão da parte central do salão, formando uma espécie de mandala sem muita regra. Alguns presentes aproveitaram para largar por ali as latinhas que iam bebendo, no intuito de compor a obra.

Findo o ato artístico dos trio de amarelo, os presentes perceberam que para todos os lados onde se olhava, acontecia alguma coisa que poderia ou não ser uma performance. Em um dos cantos, um grupo de jovens estudantes fazia algo que parecia ser uma ciranda. Um iniciado no assunto, perguntado se conhecia aqueles artistas, disse que era só um bando de adolescentes bêbados, fazendo o que faria em qualquer outro lugar.

Um senhor, perguntado sobre quais seriam os principais argumentos contra a federalização do museu, fez côro com a classe artística local: "O museu foi construído com recursos locais, o público já tem sido um dos maiores do país, há oportunidade para os artistas da região exporem, a política nacional de museus preconiza que os municípios e estados devem ter seus próprios aparelhos, um eventual museu federal só serviria pra trazer renascentistas e outros figurões pro público da Copa. E o Ibram já não dá conta dos museus que já tem." Dono de tantos argumentos, é possível que ele tenha deixado o mais venenoso para o fim. 

Ainda em setembro, o artista plástico goiano Divino Sobral declarara ao jornal O Hoje que o Ibram não estaria preparado para lidar com arte, e muito menos com arte contemporânea. “Levar para o corpo do Ibram um museu desta importância não implica necessariamente na profissionalização da instituição. Alguém pode me dizer quantos museus federais funcionam bem, equipados com tecnologia, com curadores, com conselhos, com museólogos, técnicos de conservação e restauro, com equipes de educativo?”, disparou.

*

Visto que a lua subia e as barrigas roncavam, parte dos comensais começou a debandar. Nesse momento, o coquetel foi anunciado. As mesas foram pilhadas com rapidez. Debaixo de uma delas, o mesmo hippie que abordara alguns presentes logo na entrada dormia pesadamente o sono dos justos. Parecia estar bastante satisfeito, na possível melhor performance da noite.

Adriana apareceu, satisfeita com a participação na noite. Perguntada sobre o que significava a performance com as caixas de som, ela disse que se tratava de "uma intervenção sonora, pra marcar presença". Curiosamente, na hora em que ela contava isso, do palco que estava acabando de ser montado na praça logo ao lado do museu, para o show da cantora Céu no dia seguinte, ecoaram súbita e repentinamente, numa altura ensurdecedora, os primeiros acordes de "Unforgiven", o velho clássico do Metallica. A performance do andarilho ainda era a melhor de todas, mas no quesito "intervenção sonora", o técnico de som de Céu mereceu uma menção honrosa. 

Alguns dos presentes àquela noite no Museu da República foram embora com fome. E com a sensação de que, qualquer que seja o resultado do imbróglio administrativo entre Ibram e GDF, provavelmente a classe artística local não terá muito o que comemorar. No atual cenário, pelo menos, eles têm um diretor com peito para bancar no próprio museu uma exposição de enfrentamento ao Ministério da Cultura. Mas se quiser mais adesão à causa, terá de caprichar melhor nos próximos coquetéis.

Tarde da noite, um servidor federal - tipo de alta incidência no Plano Piloto, atravessando o Eixo Monumental a bordo de uma valente Caloi, constatou com surpresa que a performance do Dudu (?) ainda não havia acabado. No meio da rua, protegido por uma viatura do Detran, um sujeito derramava sobre o asfalto garrafas e mais garrafas de vinho barato de cinco litros. O cheiro era insuportável, a avenida estava encharcada, uma infinidade de garrafões vazios enfileirados. O mendigo hippie, ainda dono da melhor performance da noite, teria ficado consternado por tamanho desperdício. Pensando bem, o vinho derramado foi a melhor performance de uma noite de vernissage sem salgadinhos.

[Depois de anos de inatividade, o blog faz uma ligeira reaparição, mais cobogó que colonial. Era originalmente uma comunicação pessoal, de Brasília para Paraty, e-mail com notícias da capital para os amigos da Cidade Histórica após o meu retorno à terra natal. O preciso HMilen deu uma arredondada nessa versão. Já não estou radicado em Paraty, mas o causo só comprova a irmandade entre as duas cidades, de bicicletas, museus e esculhambação.]