quinta-feira, 3 de março de 2011

Carnavida


Nas imediações imediatas do meu endereço o couro come na bateria e inunda todos os cômodos da casa com a vibração do carnaval. Depois de um dia atípico de frio melancólico, os sambas carnavalizados executados tão pertinho daqui me dão um novo alento. Tudo bem que a bateria não saia do feijão com arroz e o puxador mereça como maior elogio o “esforço”. Carnaval não é só isso – uma boa banda, a música bem executada, torna tudo mais bonito –, mas o espírito é esse. Um conjunto de percussão nas mãos de praticamente qualquer grupo de foliões (o limite fica mesmo bem baixo nessa época do ano) faz um bloco no mínimo suficiente pra deixar todo mundo contente.

Fui até lá pra conferir. Com o singelo nome de Os Paulos, o grupo ensaiava os sambas e marchinhas de seu desfile no barracão de fundos do posto de gasolina que costumo usar como referência da localização da minha rua. Com a nota derradeira do surdo, que agora só deve voltar a soar com o bloco na rua, cheguei em casa com vontade de escrever sobre o carnaval. Sem floreios ou sociologismos, o carnaval como eu o tenho vivido. Tem tempo que não atualizo o blog, e se é pra manter o hábito de traçar algumas linhas por aqui eu não poderia deixar passar a ocasião.

Fato é que sou apaixonado pelo carnaval, e essa não é uma paixão que vem da infância. Não de forma linear, pelo menos. Não amo o carnaval porque passei os melhores momentos da minha infância brincando nos blocos, ou porque foi no baile de algum clube que dei meu primeiro beijo ou porque venho de uma família de foliões assíduos que me ensinaram desde cedo o gosto pela festa de momo, a arte da concepção de fantasias, o caráter irreverente e muitas vezes político das marchinhas, dos frevos e de tantas músicas que embalam o feriado. Muitos carnavalófilos devem tirar explicações desse naipe pra justificar suas obsessões com a festa. Pra mim não vale nenhuma delas, o que não me isenta de recorrer a alguns psicologismos baratos quando me pergunto como foi que vim a cair de amores por esse evento, depois de chegar a odiá-lo.

A expressão no rosto não esconde a alegria 
diante dos cruzeiros que entraram na caixinha.
Essa foto aí do lado ilustra o episódio mais remoto de vivência carnavalesca que minha memória foi capaz de reter, do tempo em que eu ainda era um filhote de vara-pau. Não sei precisar o ano, mas foi num baile de carnaval do Iate Clube de Brasília. Foi minha mãe quem me levou, e a idéia da fantasia foi dela. Me vesti de menino de rua e repetia a mesma ladainha a todos os adultos e adultas que levavam suas crianças ao clube: “colabore com a caixinha!” Não me lembro do baile, das outras crianças, de confete, serpentina ou música. Tudo o que me lembro é de ter tentado ser menino de rua por um dia – tentado acreditar que eu era, e tentado convencer os outros, os adultos. As moedas que eu podia ganhar na caixinha, moedas de verdade, dependiam do sucesso do meu convencimento. É uma lembrança de carnaval, mas não é uma lembrança de festa. É uma lembrança de esforço, e a memória dessa brincadeira aparece pra mim, também, como a lembrança do primeiro trabalho. Um trabalho sem patrão, mas que me rendeu a primeira recompensa financeira. Não uma mesada automática, sem qualquer justificativa; mas a recompensa pelo meu trabalho, pelo meu convencimento. Hoje eu penso que não precisava muito pra convencer uma madame qualquer do Iate Clube a achar graça num molequinho branco e loiro brincando de ser mendigo. Mas pra mim a história era outra, eu ficava ansioso a cada vez que abordava um adulto e recebi aqueles cruzeiros com real júbilo, algo muito maior do que ganhar uns trocados mensais de pai e mãe. Foram os primeiros cruzeiros que eu realmente mereci ganhar!

Depois disso, é bem verdade, ainda tive alguns momentos memoráveis nos carnavais infantis. O que mais me encanta foi o ano em que me fantasiei de sanduíche, talvez a primeira fantasia de minha própria concepção. Aproveitando que ainda era um rapazote de medidas pouco expressivas, comprei a maior baguete da padaria, cortei-a transversalmente, pedi a minha tia que me ajudasse a envernizá-la, colei cada banda num papelão cortado em forma de alface, pintado de verde com uma rodela de tomate vermelho no meio, e descolei com minha avó uma roupa cor-de-salsicha. Depois amarrei duas alças nas alfaces e vesti o pão como aqueles “outdoors” ambulantes anunciam com cartazes pendurados às costas que compram ouro, dólares y otras cositas más.

Mas veio a adolescência, o rock e aqueles impulsos irresistíveis de rebeldia que quando surgem quase sempre vêm mal direcionados. Que nunca morra a rebeldia, mas que seja regulada a mira, o foco. Eu devia ter uns dez ou onze anos quando resolvi que não era legal ser terceiro-mundista. Tinha uns amigos europeus, outros que achavam que eram, e resolvi entrar na onda também. Nada mais fácil que se revoltar contra o próprio lugar. Só ouvia música gringa, aumentei a importância do fato hoje irrelevante de ter nascido no Velho Mundo – um golpe quase-acidental do destino –, torcia contra a seleção, incorporei o discurso-ladainha racista e classista da “ignorância” do povo brasileiro e das “vantagens civilizatórias” dos Europeus, entre outras babaquices. Tudo isso, sabe-se lá como, eu dava um jeito de encaixar numa perspectiva de mundo que se achava “esquerdista”. E nesse caldo todo o carnaval virou algo como “baderna de gente inculta, incivilizada e despolitizada que não sabe o que é boa música”. Exatamente o tipo de discurso que todos os anos, mais ou menos por essa época, eu ouço e leio nos mais diversos lugares. Outro dia li um comentário na internet, numa matéria do Correio sobre o desfile do Suvaco da Asa, retomando o eterno clichê da comparação do carnaval com o “pão e circo” romano. Dizia qualquer coisa como “o povo fica nessa baderna enquanto os corruptos roubam o seu dinheiro”, como se uma coisa tivesse algo a ver com a outra.

Se o carnaval foi vilanizado nessa fase lamentável de distanciamento do próprio lugar, ele precisou de alguns anos pra voltar com tudo como um dos fatores fundamentais de reaproximação e de realinhamento com pensamento e ação críticos e uma perspectiva centrada na localidade. A primeira descolonização, ainda antes da investida carnavalesca, veio pela música. O rock era incrível e eu tentava me distanciar do que se distanciava dele; mas o samba de Cartola, o choro de Ernesto Nazareth e Pixinguinha e o baião de Luiz Gonzaga voltavam ali pelos meus catorze anos como investidas irresistíveis. E foram abrindo portas. Antes de qualquer outra coisa, foi um novo lado da minha casa que eu redescobri: as estantes que ocupavam toda uma parede da sala com a coleção de discos do meu padrasto. Mas se era o apelo “popular-erudito”, que eu via nesses clássicos pra fazê-los encaixar numa leitura estética absolutamente restrita, o que me fez mergulhar nos volumes nacionais da discoteca de casa, aos poucos as barreiras e limites foram sendo empurrados e derrubados, e o caminho se tornou sem volta. Fui descobrindo cada vez mais paixões e cada vez mais me apaixonando pela música brasileira, que por sua vez puxou a música latino-americana, e logo logo o mundo inteiro aparecia como produtor de boa música, tornando-se muito maior que o Reino Unido e Seattle.

E aí veio o carnaval. E a primeira sedução não precisou de muito. Foi ainda em Brasília, e seu tão mal afamado carnaval. Mas pra quem não tinha nada e não sabia de nada, o Galinho da Madrugada e o Pacotão foram experiências revolucionárias. Naquela época eu já não escondia o amor pelo samba, mas tudo se transformou – para citar Paulinho – quando vi o ritmo tomando as ruas de Brasília – as quadras, pra ficar num plano ainda mais carnavalesco. E ele vinha acompanhado de vias interditadas para carros, os pedestres despreocupados; pais de família travestidos, crianças brincando livres na cidade, fantasias de todos os tipos, uma multidão colorida. Brasília mais viva do que eu jamais a conhecera. Aquilo era, antes de qualquer outra coisa, uma experiência estética maravilhosa. A cidade onde eu crescera, tantas vezes taxada de morta e hostil, um lugar onde supostamente não há gente nas ruas, de repente tomada por uma massa de pessoas alegres. Foi emocionante!

O Céu na Terra, em Santa Teresa, no pré-carnaval de 2011
E eu, que então era cheio de travas, me joguei na bagunça e fui inoculado pelo vírus do carnaval. E veio o Rio de Janeiro. Eu já sabia, porque já era notícia, que a folia carioca era maior que o sambódromo. Eram mesmo os blocos de rua que eu queria. E fui feliz! Aquilo tudo era muito maior e intenso do que o que eu vira em Brasília. E me lembrei das histórias que meu avô contava dos carnavais de seu tempo no Rio, e o bonde, e as brincadeiras, e as fantasias, e foi muito bom sentir, ainda que tardiamente, que eu compartilhava aquilo com ele. E amei o Rio mais do que nunca.

E veio Oruro, o carnaval maravilha boliviano. Nem me dei conta de que minha visita à cidade coincidiria com a festa. Foi uma coincidência fantástica. 
Diablo orureño. Essa eu tive que roubar no
gúgol, porque não levei câmera pra Bolívia
Cheguei a Oruro na véspera do carnaval. Pela ruas da cidade, todo tipo de gente trabalhava em enfeitá-la. O trajeto dos desfiles ia ganhando o equipamento das arquibancadas. E as crianças já se divertiam com os balões cheios d’água, pra desespero de turistas desavisados. A primeira coisa que fiz foi vestir a capa de chuva e me armar dos meus próprios balões. Entendi de cara o júbilo das crianças naquele simulacro úmido e divertido de uma batalha campal. O carnaval de Oruro, patrimônio imaterial da humanidade, com tantas diferenças e uma simbologia tão distante dos carnavais brasileiros, me fez sentir mais próximo do mundo andino que nunca. O fundamento religioso é sempre evidenciado por lá. Antes de qualquer outra coisa, reverencia-se à Pachamama e ao Tio Supay. Bebendo vorazmente cerveja, álcool de cozinha ou chuflay (a mistura da terrível singani boliviana com sprite), fantasiados de diabos e dançando a diablada, os orureños e camponeses de todo o território andino (que viajam à cidade pra pedir fartura à Pachamama) nunca perdem de vista a dimensão sagrada da embriaguez profana. A ch’alla, com que brindam e saúdam os próximos e os distantes, é tão profana quanto sagrada. A Virgem do Socavón divide o terreno festivo com os sacrifícios de animais e a cerveja que se derrama no chão, como aqui fazemos “para o santo”. E toda essa mistura de pachamama com catolicismo com festa com as fantasias mais coloridas que já vi com balões de água jogados por crianças nas ruas com música por toda a parte com bebedeira e tudo o mais foi como ver uma imagem contundente de que o Rio é Oruro, Oruro é Recife, e meu lugar é a América Latina tanto quanto o Brasil ou Brasília.

Olinda!
E vieram Olinda e Recife, e toda essa história se encaminhou para um desfecho urobórico na carnavalização da minha brasilianidade, do meu pan-latino-americanismo. Não há escala que dê conta de descrever a grandiosidade daquilo. No carnaval da conurbis pernambucana há lugar para tudo: para o Rio, para Brasília, para os Andes... Estar em Olinda entre o sábado de Zé Pereira e a quarta-feira de cinzas é como entrar em outra dimensão, um mundo paralelo não apenas de fantasias, mas de uma intensa fantasia onírica. É experiência transcendental, e o catalisador fundamental não é o álcool. O álcool tem seu lugar, é claro, sobretudo a cerveja que refresca o calor brutal. Mas o carnaval pernambucano é muito mais que uma festa regada a cachaça (que ali é bebida enlatada!). Nas ladeiras de Olinda e nas ruas do Recife Antigo encontrei na festa de Momo a intensidade de uma experiência religiosa. Religiosidade, diga-se, presente ali como em Oruro, sobretudo nos maracatus que produzem efeitos mágicos, em especial na Noite dos Tambores Silenciosos. Mas também uma religiosidade minha, uma religiosidade profana, um culto extático à história dos povos latino-americanos, que em Recife e Olinda, pelo menos uma semana por ano, tomam as ruas e afirmam sua potência soberana; um ritual anárquico – anarquista, ainda mais apropriado – encenado para lembrar que todo poder é frágil.

E a serpente (M’boitatá, Quetzalcóatl?) finalmente mordeu o rabo com o Suvaco da Asa. Não participei das primeiras edições do bloco, criado em 2006 por pernambucanas e pernambucanos radicados em Brasília. Só fui conhecê-lo às vésperas de minha primeira viagem ao carnaval de Recife, em 2009, no empenho de ir entrando no clima de uma folia de que eu quase nada sabia. Frevo pra mim era As Vassourinhas, e maracatu eu só conhecia em suas versões manguebeat ou naqueles movimentos da burguesia hippie brasiliense. Aquele (meu) primeiro desfile foi decisivo – me deu a chave para entrar com o pé certo na carnavalândia olindense. E a sagração completa veio logo depois, quando voltando a Brasília eu descobri por um golpe do acaso que uma das fundadoras do bloco vinha a ser minha prima – mapeamento que realizamos sem esforço, na mesa do bar onde acabáramos de nos conhecer, usando os conhecimentos genealógicos partilhados por todos os detentores de sobrenomes quatrocentões de Pernambuco, por mais distantes que sejam de suas famílias, como eu era. E assim, de uma seqüência de golpes carnavalescos, refiz os laços com toda a minha história, da família aristocrática de Camaragibe à luta anticolonial.

Essa história tem lugar ainda pra muitos capítulos e epílogos, a começar pela vida nova em Paraty, cidade festiva, dona de uma longa tradição carnavalesca, de bailes, fanfarras e blocos de mascarados. Por aqui, bonecos e máscaras enfeitando os casarões e os ensaios diários das baterias denunciam que o carnaval já inunda o espírito local. Mais, só posso dizer após as cinzas, quando começa a apuração.

3 comentários:

  1. Acho que te conheci nos anos 90, bem nessa sua fase "cuzãozinho" e agora - sabendo que foi um fase - tudo fica mais fácil de enteder, tantos amigos em comum, lugares em comum.. pode ser que ser a geração 85 de brasília é passar por uma dupla descolonialização. um viva pra nós que passamos!

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  2. Eu às vezes invejava um ou outro que podiam afirmar que caíam na folia pois sempre o fizeram, e sabem cantar os frevos ou as marchinhas ou o que quer que seja porque sempre os souberam. Na minha família, no máximo assistíamos aos desfiles pela televisão ou minha mãe concordava que eu fosse à uma matinê no clube se alguém me convidasse. Minha história também é parecida, é um descobrimento tardio do carnaval, pra gente que é de Brasília, "terra morta e hostil" eu acho ainda muito bonito que seja tardio, que seja sem os tais psicologismos baratos. Eu gosto do carnaval, e aprendi a curti-lo há pouco (apesar de nunca ter o detestado), porque é do caralho! :)
    Beijos!

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  3. Lindo texto-depoimento Pedro. À medida que lia fui rememorando a minha própria experiência com a festa de momo e com outras coisas, como a música. De alguma forma o carnaval também caiu de para-quedas na minha vida, justamente na puberdade, justamente nas ladeiras, só que de Ouro Preto e Mariana. Contudo, parece que eu mesmo compactuava com a reclusão da quaresma (fortíssima naquela região),num ímpeto de me punir pela heresia que (eu achava que)era um "rockeiro" se entregar às marchinhas e bahia songs do carnaval. Atualmente, tudo o que eu quero é me jogar nas ladeiras pernambucanas, na mesma medida que gosto e começo a dar o devido valor ao cancioneiro made in brasil. Um beijo!

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