domingo, 21 de novembro de 2010

Pinga ni mim, Paraty

Não é de hoje a fama da cachaça de Paraty.
E não é hoje, com essa postagem mixuruca, que eu vou dar por terminado o assunto no blog.
Voltarei a ele, muitas vezes, espero que a cada vez mais versado no tema.
O fato é que a cachaça paratiense não só faz juz à fama, como merecia uma divulgação reforçada.
Constatei, quando aqui cheguei e deparei com a variedade dos rótulos, que jamais bebera antes, em minha vida de bebedor, uma única dose da secular marvada da mata atlântica.
Rogério Lopes, relações públicas da APACAP,
exibe orgulhoso o patrimônio de Paraty
Explica-se. Em todo o Distrito Federal há um único revendedor de um único rótulo da produção dos alambiques de Paraty. E não me perguntem quem é, porque essa informação me foi contada durante uma privilegiadíssima sessão de degustação da danada e acabou afogada no álcool. Mas não se preocupem, porque procurarei sabê-lo e compartilharei a preciosa informação.

Já foram mais de 100 os alambiques do município, hoje reduzidos a menos de dez. Mas se a produção perdeu em quantidade, parece ter no mínimo mantido a qualidade. E quando falo da cachaça paratiense assim, de forma genérica, não é forçando a barra com induções generalizantes depois de ter provado um ou dois rótulos. Como eu disse aí em cima, tive o privilégio, recém-chegado à cidade, de participar de um verdadeiro rodízio de pinga, promovido pela APACAP, a Associação dos Produtores e Amigos (dos quais já me sinto um!) da Cachaça de Paraty.
Uma a uma provei, em pequeninas doses, todas as mais de vinte vertentes paratienses do produto bebível da destilação da cana-de-açúcar, esta que já foi uma das propulsoras do apogeu da cidade, junto com o escoamento do ouro, e que agora vai se adaptando ao novo ciclo econômico, o do turismo. Abri mão, naturalmente, das variedades adocicadas da água que a garrinchinha não bebe (gabrielas, pingas de banana e afins). Gosto do mé puro.

Não tenho competência (pelo menos por ora) pra fazer comentários pormenorizados sobre cada uma e suas diferenças. Faço apenas um destaque, após essa primeira rodada de apresentação (que na disposição da mesa da foto seguiu o sentido horário), para a premiadíssima pinga azuladinha, invenção local, que recebe folhas de mixirica ainda durante o processo de destilação. Fica azulada quando exposta à luz, e à danada de altíssima qualidade é incorporado um sutilíssimo aroma frutado. Coisa fina!

Em breve começarei a visitar, também um a um, os alambiques da região. Companhia é bem vinda!

Em minhas incursões à coleção Paratiana da biblioteca do Instituto Histórico e Artístico de Paraty, o IHAP, encontrei entre os arquivos essa inspirada oração, que transcrevi respeitando a grafia original e agora compartilho com vocês:

Credo dos Pingueiros

"Creio na subtilidade do góle e de todo o produto de cana e da caninha. Creio na aguardente que é o nosso alimento, o qual foi concebido por obra e graça do alambique. Nasceu de um puríssimo canudo, padeceu sobre os apertos e prizão das moendas, e sepultado no côcho. No terceiro dia ressurgiu da garrafa, subiu ao céu da boca das cachaceiras e pau d'água. Estando o tonél bem arrolhado de onde há de vir alegrar os grandes e pequenos.

"Creio no Espírito de 21 gráus na santa safra do mél, na comunicação do imposto na remissão do sem penas, na reçaca de todos vós amém."

Anexada ao documento, uma pequena nota: "Adaptação do Credo Católico em alusão a aguardente fabricada em Paraty. Cópia do documento original, sem data, encontrado pelo Instituto Histórico e Artístico de Paraty durante a higienização dos documentos históricos para proteção."

Por fim, sobre o tema, compartilho com vocês alguns links interessantes:

Zumbi no Campinho



O Rio de Janeiro deu o passo à frente e definiu o 20 de novembro como feriado estadual. Não é o único. São centenas os municípios brasileiros que celebram oficialmente a data do assassinato de Zumbi, em 1695, definida desde 1978 como o Dia da Consciência Negra. O Distrito Federal ainda não, a despeito da ampla e importantíssima programação promovida todos os anos pelos grupos organizados e de forma independente pela população negra e comprometida com o combate ao racismo na capital do país. Em Paraty, a festa aconteceu no Quilombo Campinho da Independência, primeiro quilombo reconhecido e titulado oficialmente no Brasil, em março de 1999.

O XII Encontro da Cultura Negra, realizado pela Associação dos Moradores do Quilombo Campinho da Independência (AMOCQ), aconteceu entre os dias 19 e 21 de novembro, com uma linda programação!

Com a benção dos òrìsàs, o tempo que esteve fechado a semana inteira abriu-se num céu de brigadeiro desde a sexta-feira, e o samba com feijoada do almoço de sábado pôde acontecer com o sol merecido.

A festa foi linda, perfumada com samba, rap, ciranda, jongo, côco, maracatu, forró, comida boa e gente maravilhosa.

Sobre o 20 de novembro, em lugar das minhas palavras, compartilho esse texto impressionante do Luiz Antonio Simas: http://hisbrasileiras.blogspot.com/2010/11/dia-de-pensar-e-refletir.html

Deixo aqui algumas fotos, e assim que descobrir como fazê-lo compartilho também os vídeos.

Abraços energizados,

Asé!

O dia começou com samba...
... e feijoada!
À noite teve o show excepcional do Realidade Negra,
grupo de rap do Quilombo Campinho da Independência...
...brindado por uma lua cheia espetacular!

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Inquilino

Mora comigo uma família de garrinchas. Ocupam um cômodo no forro do telhado do meu quintal. Quer dizer, o quintal não é meu. Sou inquilino, e em matéria de inquilinato as garrinchinhas ocupam o espaço há muito mais tempo do que eu. É delas a preferência pela renovação do contrato, caso venhamos a decidir que a casa é pequena demais para nós todos. Mas temos nos entendido bem, e não vejo porque cessaria a harmonia.

Em geral são parceiras muito tranqüilas. Não me procuram nos cantos da casa que ocupei, e apenas conversamos quando as visito no quintal.
Mas essa semana é de festa. Os filhotes da última ninhada estão dando os primeiros passos e ensaiando os primeiros vôos. Cantam o dia inteiro. Os pais estão frenéticos, sempre trazendo comida. Os recém-nascidos saltitam na grama, e se escondem assustados, atrás de algum arbusto, a cada vez que me aproximo. Os aros das rodas de Vacilene fazem as vezes de poleiro.

Vera mora na Ilha do Araújo, e trabalha fazendo faxina em Paraty. Me deu uma força na quarta, antes da mudança chegar. Foi nas mãos dela que encontrei o primeiro filhote, quando passei em casa no horário do almoço. Aprendendo a voar, entrou pela janela da cozinha e ficou preso em um dos quartos. Ela o abraçou com uma mão, acalmou com a outra, e eu cheguei em casa no momento certo pra abrir a janela. Pesadas, só se abrem com duas mãos.
Hoje à noite, plena madrugada, fui acordado por outro neófito. Perdido, foi bater à janela do meu quarto. Antes que eu conseguisse levantar pra ajudá-lo, encontrou um caminho de saída. Deixou algumas lembranças, em seu carinho visceral.
Ao vôo das garrinchas não fazem obstáculo os cobogós.

sábado, 6 de novembro de 2010

Primeiro olhar


Paraty

Igreja de Santa Rita, sede do Museu de Arte Sacra de Paraty
Acontece que o grande evento da noite paratiense de minha primeira quinta-feira era um concerto de música evangélica. De divertido, só o fato de acontecer na Praça da Igreja Matriz de Paraty, dedicada a Nossa Senhora dos Remédios. Disposto a aproveitar a noite de alguma forma, e considerando que os primeiros amigos que fiz na cidade estariam dormindo ou trabalhando, saí para uma volta pelo Centro Histórico com minha mais nova companheira e até-agora-fiel escudeira, a bicicleta Vacilene. Dar um nome assim é um vacilo, bem sei, mas foi ela quem escolheu, acreditem! Vacilene deu seus vacilos; nada de mais; e errar, afinal, é humano!

Terra


É engraçado que de algumas cidades se diga serem históricas, numa formulação que inevitavelmente pressupõe que outras não o sejam. Eu sou de Brasília. E Brasília é a cidade-cenário da maior parte da(s) minha(s) história(s). Não foi lá que nasci, mas é lá que está o chão onde eu fincaria os dois pés e revolveria a terra com todos os dedos, cavando um buraquinho que quanto mais buraco se tornasse, mais forte firmaria os pilares daquele sentimento a que chamo lar. Com tudo o que odeio, com tudo o que amo, com tudo o que talvez o tempo me tenha tornado indiferente, na capital centro-planaltina está o meu lugar de pertencimento.

Cobogó

Me lembro de como me incomodava, em criança, o cobogó da cozinha. Em parte, talvez, pelo aspecto prisional. Mas a parte mais desagradável era a limitação da vista. Eu sempre quis poder olhar para todos os lados, saber do que quer que acontecesse em todo o meu entorno. Um desejo de inspiração talvez cristã de onipresença e onisciência. Somado, não poderia deixar de ser, à intensa e aparentemente oposta atração pela potencial iminência da morte que nos dá a Vertigem. O Cobogó era esse mecanismo da engenharia modernista, essa engenharia controladora, que me impedia de desde o meu lar descer para a morte ou flanar num ideal de vida plena. Já não é nas totalidades oni que busco qualquer forma possível de plenitude, e o tempo me conduziu às pazes com o cobogó. Não só o da minha cozinha, mas esse símbolo grandiosamente minimalista da arquitetura de minha cidade-lar.

História

Brasília é uma cidade histórica. Mais, é uma cidade-história. Não só pela grandiosidade e ousadia que marcaram toda a sua idealização e realização, mas porque Brasília,sem dúvida, materializa em formas urbanísticas e arquitetônicas uma leitura muito particular da história do Brasil. Particularizar essa leitura é uma redundância, já que todas o são; mas poucas vezes os tratados históricos sobre as nações, esses textos ideológicos que forjam um futuro muito mais que um passado, foram escritos em letras tão garrafais como as amplas avenidas e prédios monumentais de Brasília. Brasília talvez seja o maior livro do mundo. E como eu gosto de passear – especialmente sobre as rodas de uma bicicleta, desafiando a obviedade opressiva dos automóveis particulares – por entre suas letras, palavras, frases e parágrafos, às vezes escritos numa prosa confusa, erudita e datada, outras tantas em versos de uma sutileza linda e profunda. Como outros tantos pequenos detalhes, planejados e não planejados, os cobogós são haikais brasilienses.

Maresia

Na Paraty-cidade-histórica pedalar é a forma mais óbvia de se deslocar. O entregador de gás, o entregador de engradados de cerveja, o esportista radical, a dona-de-casa, o patrão e o empregado, todos usam seus camelinhos. Abundam barras fortes, cestinhas e garupas-de-carga na cidade. O pescador tem uma cestinha na sua bicicleta, pra carregar peixes; a vovó também, pra fazer as compras; a cestinha aqui é item quase obrigatório, pra mocinha e pro moção. Marchas e outras sofisticações, por outro lado, são raridade. Luxo na bicicleta só o quadro de alumínio, que afinal a maresia não é brincadeira! Paraty é uma cidade de bicicletas enferrujadas. Enferrujadas, mas em movimento!

Vacilene

Vacilene é uma bicicleta azul. Toda em ferro. Tem uma cestinha na frente, e uma garupa atrás. Posso carregar xs amigxs, como posso carregar as compras, o computador, os livros, um vaso de plantas. Sei que em breve ela estará enferrujada, como a maioria de suas irmãs, as bicicletas paratienses. Na verdade, Vacilene é uma bicicleta paratiana. Aprendi que paratienses são os naturais de Paraty, e paratianos são os que vieram e ficaram. Estou começando minha vida paratiana.

O Progresso e a Civilização

O projeto de futuro que desenhou Brasília – este projeto progressista e civilizatório – apostou na liberdade do automóvel particular. O carro foi vendido como a máquina que levaria o cidadão onde ele quisesse, sem qualquer esforço. O primeiro esforço foi o de comprá-lo. Pra maioria das pessoas, isso requeria muito trabalho. O carro nunca foi pra todo mundo. A liberdade dos que já o tinham acabou com a invenção do engarrafamento. Era tarde demais. A cidade já fora desenhada para que a locomoção se desse de carro. Hoje propõe-se a bicicleta como alternativa. A bicicleta, avó do carro, agora vai até o futuro para dar três passos pra trás e retornar como a alternativa visionária. Paraty, cidade colonial, museu vivo, com suas ruas e edificações preservadas desde os séculos XVII, XVIII e XIX, tem bicicletas e ciclovias por todos os lados.