quarta-feira, 13 de julho de 2011

Dos Alterógrafos


O autógrafo como fetiche

Alguém já deve ter dito das dedicatórias, sobretudo as autógrafas, que compõem em si subgênero literário. Algumas são, de fato, peças literárias. Ouvi dizer por esses dias que as dedicatórias em verso do Drummond viraram livro. Digo isso só pra citar um exemplo, e pra parecer que este blog está antenado nos lançamentos (não, não está). Mas acho que é um exemplo excepcional, e de fato as dedicatórias costumam ser outra coisa (pelo menos se concordarmos que literatura não é sinônimo de escrita).

Das dedicatórias, autógrafas ou não (e falo aqui especialmente daquelas derramadas sobre livros, em geral na folha de rosto), há muito o que se pode dizer, de muitas perspectivas, e muito elas dizem da literatura. Da literatura como campo, diga-se, que envolve não apenas a dimensão estética, mas tudo o que a ela mais diretamente se associa, incluído aí o mercado literário.

Há o fetiche, talvez o elemento mais óbvio. E um fetiche exemplar, olhemos-lhe como o faria Marx ou como o faria Freud. O garrancho missivista que reinventa e eterniza numa mesma frase a relação muitas vezes fantasiosa entre o nome de quem escreve, remetente, e o nome de quem lê, destinatário; a mácula de tinta na página clara, que curiosamente tornará o exemplar, dali em diante, um objeto imaculável; a marca pessoal da autora, na letra de próprio punho, à mercê da grafologia amadora do leitor, restituindo algo do elemento pessoal e artesanal em um objeto que se tornou industrial.

Flip

Em um evento literário como a Flip, autógrafos e dedicatórias ocupam um lugar muito especial. Pautam decisões da curadoria, tiram leitores e leitoras de casa (às vezes de muito longe), produzem filas monumentais, movimentam as livrarias. A livraria oficial do evento, vinda diretamente de São Paulo, ficava, não por acaso, justamente na “Tenda dos Autógrafos”, bem ao lado da mesa onde se sentavam autores e autoras (para o descontentamento do casal local de livreiros, desprestigiado pela organização da Festa). Nunca se vendeu tantos livros em tão pouco tempo como nos minutos imediatos após a bem sucedida palestra daquele escritor carismático, que em instantes capricharia na simpatia enquanto dedicaria beijos e abraços assinados por três horas, até que seu punho acusasse a tendinite (tá bom!, lançamento de Harry Potter vende mais, mesmo sem autógrafo).

Alguém certamente já escreveu um belo e merecido ensaio sobre as dedicatórias autógrafas, e eu serei grato a quem me indicar onde encontrá-lo. Mas não vou ensaiar aqui sobre o pretenso subgênero. Mais do que isso, nesses dias pós-Flip, me interessam as histórias por trás dos rabiscos. Acho que elas contam muito da relação entre leitores e leitoras (bibliófilos/as ou não), autores e autoras, livros e literatura, e inevitavelmente o mercado editorial e seus eventos.

Transdedicatórias

Meu amigo Carlos me contava, dia desses, de uma bonita coincidência. Comprou um livro usado, pela internet, e recebeu-o dedicado. Não a ele, é evidente. Tratava-se de uma antiga dedicatória, do tempo da edição. Mas o antigo portador era homônimo, e meu amigo foi surpreendido com um afago transgeracional, de alguém que jamais conhecera (possivelmente morto), endereçando palavras de afeto “Ao Carlos”. O Carlos chorou quando abriu o pacote, diante daquilo que a Ju interpretou como uma conspiração do universo. As dedicatórias são muitas vezes inspiradoras, mas às vezes são também conspiradoras.

O livro acidentalmente encaminhado ao destinatário desconhecido (pelo autor) da dedicatória, ainda redime pelo acaso a dimensão mais sublime da livraria de usados em tempos de sebos virtuais. Se já não há a possibilidade de se deparar, em meio a prateleiras nunca dantes exploradas pela humanidade, com exemplares raros e achados inesperados - o que dava sentido à função de vasculhador de sebos -, resta ainda a possibilidade do imponderável pela casualidade. Já não é mais o comprador bibliófilo quem vasculha as prateleiras, abana a poeira e afasta as teias de aranha em busca do grande achado. Agora cabe-lhe utilizar as palavras corretas na busca em estante virtual, encontrar o livro pretendido (o procurado, não o descoberto) e esperar que o livreiro o separe e encaminhe pelo correio. O que resta de acaso fica com coincidências mágicas como a da homonímia autografal.

Alterógrafos

Este exemplo de transdedicatória sugeriu-me ainda o grande valor não do autógrafo, mas do altógrafo. Ou alterógrafo, pra evitarmos o erro do neologismo heterógrafo, tão propenso a mal-entendimentos futuros. Trata-se daqueles livros que são autografados, mas não pelo autor. É um gênero muito próximo das dedicatórias afetuosas que costumam ser oferecidas com os livros presenteados (talvez até as inclua, em muitos casos pelo menos), mas que ainda guarda algo da relação autor(a)-leitor(a).

Conto um exemplo, diretamente da Flip: um dos momentos mais bonitos do evento foi um pequeno concerto oferecido em homenagem ao Paulo Moura, que deixou o mundo mais triste há exatamente um ano, no dia 12 de julho de 2010. Tocaram quatro grandes instrumentistas, parceiros do maestro em vida, na sala onde ele também tocara anos antes, no Teatro Espaço. Cliff Korman no piano, Daniela Spielmann no sax e na clarineta, Katia Preta no trombone e Robertinho Silva na percussão dividiram o palco com a viúva de Paulo Moura, a psicanalista Halina Grynberg, que lançava a biografia “Paulo Moura, um solo brasileiro”, de sua autoria. Comprei o livro ainda antes do show, uma edição maravilhosa que acompanha um CD do mestre em parceria com Andre Sachs e várias participações.

Entre uma música e outra, a viúva lia trechos do livro e contava histórias. Por mais que eu respeitasse a intensidade do que representava para ela aquele momento, de homenagem ao grande homem com quem foi casada por 26 anos, sua vaidade pavoneante e a insistência de querer ser maior que os/as músicos/as e a própria música não me permitiam criar empatia. A falta de empatia virou antipatia declarada quando a viúva desautorizou no palco o Robertinho Silva, um dos grandes da música brasileira e mundial, baterista e percussionista, parceiro não apenas de Paulo Moura, mas também de Milton, Wagner Tiso, George Benson, João Donato, Tom, Gal e Sarah Vaughan, pra citar uns poucos. 

Uma cena colonial, em um casarão do Centro Histórico anterior à abolição, em que a senhora branca, imbuída de autoridade estrutural e de ocasião (por ser branca, mas também por ser a viúva e por ser autora no evento literário), destratou o músico negro que ameaçou falar também, contar uma história vivida por ele próprio com o homenageado, mais de trinta anos antes, quando ela sequer conhecera o marido: “se você falar, eu vou tocar percussão”. Robertinho respondeu com um irônico “sim, senhora”, não em sinal de submissão, mas para evidenciar em que tipo de cenário aquela cena se ia configurando. No fundo, um enorme pôster com o sorriso negro do próprio Paulo.

Terminado o show, não pensei duas vezes: no lugar do autógrafo de Halina sobre o livro que escrevera, fui reverencioso entregar a caneta pro Robertinho, que assinou meu exemplar com alegria. Aqui, mais do que o fetiche, o pedido do autógrafo (ou alterógrafo) foi uma declaração de admiração e respeito, e um posicionamento.


Robertinho nos deu a honra de participar da roda de samba. O também
ilustre Chiquinho da Livraria esteve por lá.

Transferência

Houve história vagamente assemelhada, esta não um caso de alterógrafo, mas de transferência de fetiche. Fui com certa expectativa assistir à mesa intitulada “Pontos de Fuga”, com a argentina Pola Oloixarac e o português nascido em Angola valter hugo mãe. Primeiro por ser uma das poucas mesas da Flip em que eu já havia lido romances dos dois autores, e gostado; segundo porque havia meses que se falava com expectativa na presença dos dois em Paraty, expoentes da nova literatura. E havia a Pola, por mais perverso que isso possa ser quando o assunto que interessa é a literatura, que trazia ainda a expectativa sobre sua beleza. Pola era a sensação da Flip.

A mesa, no entanto, foi do mãe. O português carismático, nome sempre grafado em minúsculas, conseguiu arrebatar a platéia falando com simplicidade e humor de sua própria intimidade, de sua visão da literatura, de seu próximo romance e de sua relação com o Brasil. Tratando sobretudo do tema da “perda” e da “falta”, mãe se emocionou e emocionou o público lembrando da morte do pai e afirmando que “o escritor substitui na literatura aquilo que lhe falta”.

Saí eu próprio arrebatado, encantado com o mãe quando esperava me encantar com a Pola, e decidi pedir o autógrafo dele. Foi a única ocasião em que me dispus a comprar um livro na livraria oficial do evento e entrar na fila em busca de uma assinatura. E não fui o único. O romance novo dele, lançado na própria Flip, foi o único a esgotar nas prateleiras durante o evento, 500 cópias vendidas, duas mil pessoas na fila dos autógrafos.

Alguém se arrisca a decifrar que diabos
rabiscou o mãe?
Mas não entrei na fila apenas pra ter a letra dele no meu exemplar. Decidi, em troca, eu mesmo presenteá-lo com um livro. Lhe ofereci Matita, o bruxo, romance do Paulo César Pinheiro que eu acabara de ler e que muito me lembrara o romance anterior do mãe, o remorso de baltazar serapião. E não tive dúvidas: tasquei na folha de rosto a minha própria dedicatória, de agradecimento de leitor. Entrei na fila dos autógrafos não apenas pra ganhar, mas também pra oferecer um “autógrafo” (neste caso, meu próprio alterógrafo). E saí de lá com um garrancho ilegível escrito em caneta branca sobre a folha de rosto preta de a máquina de fazer espanhóis. Só decifrei ali o meu nome, e deduzi o nome do autor. Que, diga-se, não é nome de batismo. O mãe, na verdade, é batizado Valter Lemos, quem sabe meu parente distante, e escolheu levar a referência maternal no nome de trabalho por acreditar na incondicionalidade da presença materna, e na necessidade de que a literatura seja ela própria incondicional (na relação do autor com sua obra). Acho esse papo piegas e um tanto quanto duvidoso no caso da maternidade, mas gosto da defesa de uma literatura incondicional.


Sobre a maternidade, a propósito, a Pola teve um de seus bons momentos na mesa, quase sempre devidos a pitadas de acidez derramadas sobre o clima de comoção provocado pelo colega. Quando ele afirmou que pensava agora em ser pai, pela primeira vez, chegando aos 40 anos, a argentina comentou que se fosse ela a dizê-lo seria acusada de estar dando declarações do nível de Sex and the city.

É bom que se diga que fui movido aqui, em minha busca pelo autógrafo de v.h.m., pelo arrebatamento, pela fala que me fez emocionar e chorar. Disse coisas interessantes, a Pola. Sobretudo em momentos exteriores à mesa, em que ela nitidamente foi surpreendida pelo rumo da conversa (que prometia ser uma conversa sobre literatura) e acabou intimidada. Fez uma deliciosa provocação ao italiano que desistiu de vir à Flip em “protesto contra o governo brasileiro” pela não extradição do Cesare Batisti. E ainda uma leitura importante, de abrangência latino-americana, da contribuição do Oswald de Andrade, autor homenageado da Festa, ao aproximá-lo do patrício J. L. Borges, pensando a dificuldade dos dois países em dialogar quando muitas vezes falam das mesmas coisas. E apontou para a originalidade de Oswald, quando Borges estava sobejamente centrado num modelo importado de T. S. Eliot.

Desautografia

Falando em Oswald, e voltando aos autógrafos, houve quem tenha apanhado um dos exemplares de O Rei da Vela distribuídos gratuitamente pela Folha de S. Paulo e procurado ansiosamente ao longo do evento por uma oportunidade de encontrar o autor da vez para uma dedicatória personalizada no livro.

E ainda sobre autógrafos que não aconteceram, há o caso daqueles pedidos ao autor errado. A Flip estava especialmente propensa a fatalidades e constrangimentos como esse envolvendo autores e mediadores carecas de meia idade. Eram vários, inclusive o próprio mãe. Vislumbrei, num momento de sonho, uma cena ideal: um rapaz, emocionado com a participação do mãe, porém sem saco pra esperar horas na fila, procura pelo português nas ruas da cidade, o livro sempre debaixo do braço. Avista em uma das ruas de pedra a figura do autor careca, e o aborda com um sorriso e uma caneta. O escritor fica satisfeito com o reconhecimento, também sorri, e só quando toma o livro na mão para começar a escrever é que se dá conta de que não é obra sua.

– Você me desculpe, mas esse livro não é meu.

– Mas você não é o mãe?

– Não, eu sou o Pondé.

E o rapaz vai embora, decepcionado, deixando também decepcionado o mais canastrão dos autores da Flip. Eu não queria falar sobre o Pondé, de quem acho que nem vale a pena comentar, mas vou aproveitá-lo só pra fazer um gancho. O infame colunista da Folha foi convidado pra dividir a mesa com o Miguel Nicolelis, outra atração de grande envergadura da Flip. É evidente que não foi a escolha mais apropriada, e a presença do neurocientista, cuja apresentação resumiu-se a uma breve apresentação dos aspectos mais gerais de seus experimentos geniais, podia ter sido muito melhor aproveitada se tivesse tido a companhia de um provocador das implicações políticas e filosóficas de seu trabalho e seus produtos. Penso, por exemplo, no quão incrível poderia ter sido uma mesa reunindo Nicolelis e Eduardo Viveiros de Castro, ou a Donna Haraway. Pondé não fez nada disso.

Da provocação

Quem o fez, no entanto, em forma de provocação divertidíssima, com todo o respeito que eu tenho ao Nicolelis, foi o grande Zé Celso Martinez, na Macumba Antropófaga que encerrou o evento. Fazendo a ponte entre um dos momentos de maior repercussão da Flip e o texto mais notório do autor homenageado, Zé Celso resgatou do Manifesto Antropofágico a figura já folclórica do Dr. Voronoff, e a fundiu com a do criador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal. Aqui foi o cientista franco-russo, já cantado por Noel e Lamartine, inventor de método nada ortodoxo de rejuvenescimento, quem transplantou glândulas sexuais de macacos em um tetraplégico e o fez levantar e marcar um gol apoteótico, com a camisa da seleção, como Nicolelis espera fazer na abertura da Copa do Mundo de 2014 utilizando um exoesqueleto controlado por estímulos cerebrais. Ciência e mito, aproximados não em menosprezo à ciência, mas em prol do entendimento da história e da narrativa crítica.

Haveria muito mais o que dizer sobre a Flip, é evidente, assim como muito já se disse nos últimos dias. Me esquivo, por ora, de qualquer comentário geral sobre o evento. Eles inevitavelmente surgirão em outros textos, quando eu abordar questões caras à cidade. Alguns temas importantes foram sugeridos no texto que linko aqui e também neste aqui, por gente que como eu também se mudou pra Paraty há pouco. Mas encerro assim mesmo, retomando as dedicatórias, dedicando este post já grande demais ao Carlos e à Ju.

5 comentários:

  1. Massa! Há também o causo do Olavo: comprou um livro do J.Jorge no sebo e achou, na folha de rosto, uma dedicatória do autor. O livro (traduções de cantos do Xangô do Recife, alguma coisa assim), na época de sua publicação, parece ter sido um presente do Jorge para um de seus futuros antagonistas no caso Ari... RS!!!

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  2. Muito bom! Nesse caso aí rolou um autógrafo-evidência, seguido de queima de arquivo.

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  3. a conspiração é esse acaso - meio a tanto material humano, intimidade... acaso esse que encontra, de forma desencontrada, sentidos ou mudanças de sentido.

    valeu pelo texto, pedro, me transportou um pouco até parati, e melhor, a nossa conversa rendeu-me a mais libertadora arte da 'dedicatória aos autores'. ju

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  4. Estive lá e perdi algumas dessas histórias, como, ai, a viúvia do Paulo Moura, e, eba!, a troca de livros com o valter hugo mãe (e, por bem pouco, o robertinho no samba).
    Mas muito bem, pós-flip, vê-los aqui, tão bem escritos. Beijos.

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  5. Nossa, "viúva do Paulo Moura" e "Mas muito bom". hehehehe! Beijos, Ju.

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