sábado, 6 de novembro de 2010

Primeiro olhar


Paraty

Igreja de Santa Rita, sede do Museu de Arte Sacra de Paraty
Acontece que o grande evento da noite paratiense de minha primeira quinta-feira era um concerto de música evangélica. De divertido, só o fato de acontecer na Praça da Igreja Matriz de Paraty, dedicada a Nossa Senhora dos Remédios. Disposto a aproveitar a noite de alguma forma, e considerando que os primeiros amigos que fiz na cidade estariam dormindo ou trabalhando, saí para uma volta pelo Centro Histórico com minha mais nova companheira e até-agora-fiel escudeira, a bicicleta Vacilene. Dar um nome assim é um vacilo, bem sei, mas foi ela quem escolheu, acreditem! Vacilene deu seus vacilos; nada de mais; e errar, afinal, é humano!

Terra


É engraçado que de algumas cidades se diga serem históricas, numa formulação que inevitavelmente pressupõe que outras não o sejam. Eu sou de Brasília. E Brasília é a cidade-cenário da maior parte da(s) minha(s) história(s). Não foi lá que nasci, mas é lá que está o chão onde eu fincaria os dois pés e revolveria a terra com todos os dedos, cavando um buraquinho que quanto mais buraco se tornasse, mais forte firmaria os pilares daquele sentimento a que chamo lar. Com tudo o que odeio, com tudo o que amo, com tudo o que talvez o tempo me tenha tornado indiferente, na capital centro-planaltina está o meu lugar de pertencimento.

Cobogó

Me lembro de como me incomodava, em criança, o cobogó da cozinha. Em parte, talvez, pelo aspecto prisional. Mas a parte mais desagradável era a limitação da vista. Eu sempre quis poder olhar para todos os lados, saber do que quer que acontecesse em todo o meu entorno. Um desejo de inspiração talvez cristã de onipresença e onisciência. Somado, não poderia deixar de ser, à intensa e aparentemente oposta atração pela potencial iminência da morte que nos dá a Vertigem. O Cobogó era esse mecanismo da engenharia modernista, essa engenharia controladora, que me impedia de desde o meu lar descer para a morte ou flanar num ideal de vida plena. Já não é nas totalidades oni que busco qualquer forma possível de plenitude, e o tempo me conduziu às pazes com o cobogó. Não só o da minha cozinha, mas esse símbolo grandiosamente minimalista da arquitetura de minha cidade-lar.

História

Brasília é uma cidade histórica. Mais, é uma cidade-história. Não só pela grandiosidade e ousadia que marcaram toda a sua idealização e realização, mas porque Brasília,sem dúvida, materializa em formas urbanísticas e arquitetônicas uma leitura muito particular da história do Brasil. Particularizar essa leitura é uma redundância, já que todas o são; mas poucas vezes os tratados históricos sobre as nações, esses textos ideológicos que forjam um futuro muito mais que um passado, foram escritos em letras tão garrafais como as amplas avenidas e prédios monumentais de Brasília. Brasília talvez seja o maior livro do mundo. E como eu gosto de passear – especialmente sobre as rodas de uma bicicleta, desafiando a obviedade opressiva dos automóveis particulares – por entre suas letras, palavras, frases e parágrafos, às vezes escritos numa prosa confusa, erudita e datada, outras tantas em versos de uma sutileza linda e profunda. Como outros tantos pequenos detalhes, planejados e não planejados, os cobogós são haikais brasilienses.

Maresia

Na Paraty-cidade-histórica pedalar é a forma mais óbvia de se deslocar. O entregador de gás, o entregador de engradados de cerveja, o esportista radical, a dona-de-casa, o patrão e o empregado, todos usam seus camelinhos. Abundam barras fortes, cestinhas e garupas-de-carga na cidade. O pescador tem uma cestinha na sua bicicleta, pra carregar peixes; a vovó também, pra fazer as compras; a cestinha aqui é item quase obrigatório, pra mocinha e pro moção. Marchas e outras sofisticações, por outro lado, são raridade. Luxo na bicicleta só o quadro de alumínio, que afinal a maresia não é brincadeira! Paraty é uma cidade de bicicletas enferrujadas. Enferrujadas, mas em movimento!

Vacilene

Vacilene é uma bicicleta azul. Toda em ferro. Tem uma cestinha na frente, e uma garupa atrás. Posso carregar xs amigxs, como posso carregar as compras, o computador, os livros, um vaso de plantas. Sei que em breve ela estará enferrujada, como a maioria de suas irmãs, as bicicletas paratienses. Na verdade, Vacilene é uma bicicleta paratiana. Aprendi que paratienses são os naturais de Paraty, e paratianos são os que vieram e ficaram. Estou começando minha vida paratiana.

O Progresso e a Civilização

O projeto de futuro que desenhou Brasília – este projeto progressista e civilizatório – apostou na liberdade do automóvel particular. O carro foi vendido como a máquina que levaria o cidadão onde ele quisesse, sem qualquer esforço. O primeiro esforço foi o de comprá-lo. Pra maioria das pessoas, isso requeria muito trabalho. O carro nunca foi pra todo mundo. A liberdade dos que já o tinham acabou com a invenção do engarrafamento. Era tarde demais. A cidade já fora desenhada para que a locomoção se desse de carro. Hoje propõe-se a bicicleta como alternativa. A bicicleta, avó do carro, agora vai até o futuro para dar três passos pra trás e retornar como a alternativa visionária. Paraty, cidade colonial, museu vivo, com suas ruas e edificações preservadas desde os séculos XVII, XVIII e XIX, tem bicicletas e ciclovias por todos os lados.

 

4 comentários:

  1. Muito bonitas as fotos Pedro!! FIquei com vontade de conhecer!
    Abraço forte!
    Fernando Martinelli

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  2. Essa telinha das fotos é a tela da cestinha da vacilene?
    Aqui ninguém usa cestinha, acho tão prática e tão linda.

    Agora que vi você posando nas fotos, todo gatinho. ;)

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  3. pois é, a telinha é a cestinha, se achando cobogó.
    e eu tô lá posando. quem bateu as fotos foi a própria vacilene! :)

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  4. que maravilha isso acá. que texto mais bom de ler. curtzi :)

    virei sempre.

    beijas calangas tocantinas cerradas e com carinhas :*

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