terça-feira, 19 de julho de 2011

Balada de Paraty revolta

Morreu às duas da manhã de uma segunda-feira
A noite ardia escura, mar calmo na costeira
Furou-lhe a lâmina fria ainda era domingo
As pedras estavam secas, caiu o primeiro pingo
Na cidade a água rubra, jorrando na pedraria
Maré esperando a hora do rito de assepsia

Saiu pela noite quente, tomou três no Amarelinho
Já não sabia pra que bebia, só não queria estar sozinho
Fez um brinde aos companheiros, mas não o queriam lá
Bebia, ficava chato, não sabia quando parar
Sentiu-se triste, rejeitado
Foi cair em outro lugar

Era noite de lua cheia, brisa quente da costeira
Chovia no alto da serra, temporal na cabeceira
No bar todo mundo sorria, mas não sorriam consigo
Pensou no quanto queria, naquela hora um amigo
Doeu-lhe não ser querido, invejou aquela alegria
Bebeu a saideira com raiva, disfarce da melancolia

As águas se revolviam, o ímpeto era crescente
Não tardava o Perequê-Açu subia e virava enchente
Saiu falando de amor, mas era ódio o que sentia
A cabeça confusa e cheia, mais uma dose vazia
Foi pra porta do forró
Pra ver o que acontecia

As moças dançavam bonito, os homens se divertiam
O sangue subiu à cabeça, as veias da pica se enchiam
Puxou a primeira que viu, nem bem sabia o que queria
O marido puxou a faca, presa da valentia
Furou-lhe a barriga de frente
O sangue jorrou impuro, tromba d'aguardente

Caiu torto sobre as pedras, nunca encontrou posição
Emprestou suas tripas à história secular daquele chão
Ficou a esperar que o Estado lhe desse enfim um abrigo
Não viriam lhe chorar, faltava-lhe o pranto amigo
A noite seria no claro, mais uma dormida na rua
Eram ele e a maré, embalados pela lua

O leito ganhava corpo, a tromba d'água descia
O corpo fazia leito na rua que amanhecia
Às onze sobe a maré, a enchente se anuncia
O corpo jaz intocado, o povo lhe policia
Não há quem lhe possa levar, acreditem vocês
Rabecão aqui não há, e o de Angra só chega às seis

Levou-lhe o corpo a enchente
Lavou-lhe a morte indecente
Deu capa de jornal
Trocaram-lhe a miséria do copo, e do crime passional
Pela miséria do corpo
Triste sina de indigente
Em tragédia ambiental

E o mar lavou as calçadas


Escrevi este poema em homenagem ao Zé Kleber, poeta maior da cidade, autor desta Balada de Paraty.
Foi um choque deparar, ainda no verão, com um corpo jazendo no chão, dia avançado, em pleno Centro Histórico. Vários curiosos em volta, alguém me contou que morrera no início da madrugada. Paraty não possui IML, o mais próximo fica em Angra, e o rabecão só passa aqui no final da tarde. Quem morre durante a noite espera o dia inteiro pela carona derradeira. Se o corpo caiu na rua, sobretudo quando o caso pede perícia, ali ficará à vista de todos e de todas. Cobrem-no com um lençol, para tentar amenizar o hediondo da cena. Quando o calor é demais, improvisam alguns guarda-sóis para tentar retardar a putrefação e o odor pestilento.
Quando presenciei a cena, vários meses atrás, fiquei estarrecido. Custando a acreditar na realidade de algo tão absurdo, tentei escrever sobre aquilo. Comecei a escrever um conto, que acabei não terminando. Calhou de justo naquele dia o rio Perequê-Açu subir até quase transbordar, e eu fiquei imaginando uma história fantástica (porém nada impossível) em que a enchente varreria a cidade e carregaria o corpo. Passado o momento crítico da catástrofe, o corpo seria encontrado e lhe seria atribuída a morte pela enchente, e não pela facada (também foi uma observadora curiosa do corpo quem me contou que a morte fora por faca). E o sujeito morreria assim pela segunda vez.
Hoje, escutando o Zé Kleber, lembrei da história e resolvi tentar novamente escrevê-la. Saiu na forma de poema, um tanto torto, gênero em que nunca me aventurei (mesmo como leitor, nunca fui muito longe). Ainda sei pouco sobre o Zé Kleber, uma das figuras mais queridas, admiradas e lembradas da cidade. Morreu em 1989, logo após ser eleito vereador. Mas sei que lutou apaixonadamente por Paraty e deixou lindas canções e poemas sobre a cidade. Várias delas podem ser encontradas neste link, sempre ilustradas por belas imagens de uma Paraty anterior à inauguração da BR-101 e da chegada do turismo. Até hoje, nas rodas de música locais, sempre são lembradas e cantadas em coro, com muita emoção, as canções do Zé Kleber.
Em uma próxima oportunidade escrevo sobre a violência por aqui. Por incrível que possa parecer, Paraty é considerado um dos municípios mais violentos do Brasil, em número de homicídios por habitante. Segundo o Mapa da Violência 2011, produzido pelo Instituto Sangari e pelo Ministério da Justiça, Paraty está na 72º posição dentre os mais de 5 mil municípios do país, com o número alarmante de 62,5 homicídios por 100 mil habitantes para o ano de referência de 2008. Hoje mesmo ouvi dizer, no boca a boca, que mais de uma pessoa perdeu a vida no último final de semana por causas violentas. As mortes, de maneira geral, são atribuídas a relações com o tráfico de drogas e a crimes passionais (normalmente, jovens que matam outros jovens por ciúmes em relação às suas namoradas). Nunca soube de um assassinato em assalto, por exemplo. A arma quase sempre é de fogo, mas às vezes puxa-se a faca.
E o rabecão só volta às seis.

5 comentários:

  1. Acho bonito e sutil (apesar do ocorrido parecer estar longe dessa sutileza toda) essa percepção de desdobramentos tão reais e fortes de um fato como esse - não há IML. Acho muito bonito também ler uma história conhecida e redescobri-la, coisa da sua escrita, Pedro! Beijos!

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  2. Valeu, Ju! É sempre muito bom encontrar seus comentários aqui. :)

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  3. A-do-rei! Se joga, bonito, a poesia está te esperando de braços abertos. Gostei da riqueza de imagens (e de sensações): um filminho passou na minha cabeça. Outra coisa, com alguma adaptação (e um refrãozinho), rende um samba, tipo "Mulato calado" e "O velório de Heitor".

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  4. Parabéns, Pedrão. Muito bom o texto, belo o poema!
    amplos amplexos!

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  5. (agora, o papo reto: atualizações???)

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