Paraty, 30 de
dezembro de 2010
Temi pelo pior. A previsão era que chegassem às três horas,
e como desfrutava o recesso de fim de ano voltei pra casa e abri uma cerveja
pra esperar. Não estava só. Walison também tinha um copo sobre a mesa de latão que dá vida ao meu quintal com os resquícios de cervejas velhas que afogaram
mágoas e brindaram alegrias por tantos anos em um ou mais bares de qualquer
lugar do Brasil. Vinham de São Paulo, e quando ligaram ao meio-dia avisando que
já estavam na metade do caminho imaginei que o Atlântico já fizesse parte da
vista da estrada. Fiz um mapa horroroso indicando como se chega à minha casa, a
partir do trevo rodoviário na entrada da cidade. Nem me ocorreu avisar que o
caminho natural de quem vem pra Paraty de São Paulo é por Ubatuba, a terra de
Cunhambebe.
Brasília, anos 2000
De muitas excrescências políticas vistas e vividas na
capital federal, uma das mais surreais foi a mobilização de parte da comunidade
do Lago Norte (bairro peninsular de mansões colado ao Plano Piloto) contra a
construção de uma segunda ponte de acesso. Alegavam que a ponte apenas serviria
ao acesso e mobilidade das comunidades mais pobres do entorno do bairro
(Paranoá e Varjão, em especial). Para os “militantes” lago-nortinos, todos
proprietários de carros particulares, mobilidade não era demanda prioritária.
E, numa relação que demonstra sensível capacidade argumentativa, intuíam que a
facilitação do acesso ao Lago Norte pela vizinhança menos abastada traria toda
a sorte de mazelas para sua ilibada comunidade.
Paraty, Era Cenozóica,
Holoceno
Bombardeado a vida inteira por este tipo de racionalidade,
não foi exatamente com surpresa que fui perceber, logo na primeira semana em
Paraty, que o mesmíssimo discurso faz sucesso por aqui também. O alvo
prioritário é a estrada Paraty-Cunha, que aliviaria o tráfego da infame BR 101,
devolvendo à histórica cidade portuária sua ligação com São Paulo e Minas. A
Paraty-Cunha segue a rota da antiga – e agora de volta à moda pra turma do
turismo de aventura – Estrada Real, atravessando o Parque Nacional da Serra da
Bocaina. A previsão é de que as obras de reforma da estrada (falta um trecho do
lado fluminense, ainda não asfaltado) fiquem prontas até o fim de 2011. Será
muito mais fácil o acesso terrestre à cidade, que não mais se dará
necessariamente pela tensa costeira sinuosa. E é isso que assusta a população
abastada local, a perspectiva de que o acesso facilitado traga ainda mais
turistas pra cá, e um turismo menos – digamos – chique. Milhares de famílias de
motobóis, contínuos e outros “populares” paulistanos escolhendo a cidade
colonial pra evitar nos feriados de sol os engarrafamentos do Guarujá.
Paraty, 30 de
dezembro de 2010
Já eram quase quatro horas quando decidi telefonar. Não
quis encher o saco antes, porque um atraso de meia hora é compreensível,
imaginei a estrada cheia, e não queria parecer ansioso. Mas eu já começava a me
embriagar – esperávamos que todos chegassem pra um almoço coletivo e com a
tarde avançada a cerveja gelada roncava no meu estômago. Fiquei preocupado:
acidentes não são raros na BR 101, e não é nada bem afamado o posto policial
que faz ronda nos primeiros trechos fluminenses de estrada, logo após a
fronteira de Ubatuba. Liguei primeiro no telefone de Marina, desligado ou fora
da área de serviço; com o do Antonio, a mesma coisa. Achei estranho, porque há
cobertura em todo o trajeto da Rio-Santos. Mais uma cerveja, e voltei a
telefonar. Quase às 17 horas, após muitas cervejas e muito ouvir as gravações
de celular fora de área, estava certo de que estariam acidentados ou presos –
possivelmente, e na melhor das hipóteses, teriam sido ganhos com um baseado ou coisa parecida. Chegaram.
Orientados por uma pegadinha do GPS, tomaram a “mais curta” Paraty-Cunha.
Guaratinguetá, 1º de
janeiro de 1835
Abaixo assinado, datado de 1º de janeiro de 1835, firmado por
55 “cidadãos, filhos e moradores da Provincia de São Paulo, [Guaratinguetá]
trabalhando efetivamente com suas tropas na estrada que daquella Provincia se
dirige a essa Villa...” e dirigido à Câmara de Paraty, que dizia “representar
contra o deplorável estado em que ora, mais que nunca, se acha a Serra
denominada do Paraty; é sem dúvidas, Ilmos. Srs., assás doloroso, que apezar de
pagarem tantos Direitos e de concorrerem tão eficazmente para o aumento e
prosperidade dessa Grande Villa, sejão contudo os infra escritos condenados a
sofrerem tantos males, encomodos e prejuizos, em conseqüência do desprezo em
que se acha aquela Serra, desprezo que tão caro custa aos abaixo assinados, que
por muitos titulos parece que deveriam merecer mais cuidados e atenções de V.
Sas.; ao menos Ilmos. Srs. que uma só vez a cada anno se ordenasse o conserto
de alguns mais notaveis precipicios que ali se encontram, já seria isso
tolerável. Porém um abandono assim tão completo da única Estrada pela qual se
acarreta para o Porto os ricos produtos daquella Provincia, é certamente digno
de lástima. Os abaixo assinados, sofredores já de grandes perdas, não só em
seus animais, como em seus próprios Escravos, vem perante V. Sas. reclamar com
urgência por algum conserto naquella Serra, e quando isso não possam conseguir,
ao menos pedir a abolição dos Direitos a que estão obrigados no Registro da
Cachoeira. Tal é o apuro, Ilmos. Srs. a que os abaixo assinados são forçados:
da inteireza pois e justiça de V. Sas. depende talvez a continuação ou
cessassão de um commercio que muito influi, não só para a felicidade dos abaixo
assinados, como e ainda muito mais para a prosperidade desse Porto. É pois com
a maior confiança que os abaixo assinados, desesperados com os obstáculos que
naquella Serra encontram, se dirigem diretamente a V. Sas., convencidos
intimamente de que esta sua representação ou petição será indubitavelmente
recebida e atendida como é de esperar-se do zelo e patriotismo de V. Sas.”.
Villa de Nossa Senhora dos Remédios de Paraty, Era de Peixes
Sobre os impostos, ou “Direitos” (os pedágios da época),
escreve o Dr. Samuel Costa que “Era tal a situação de angústia dos tropeiros,
(precisando muitas vezes na secção da Vargem do Bananal estender os ligais de
couro para as tropas sobre elas atravessarem os lamaçais), que ofereceram a
contribuição voluntária de ‘quarenta réis’ por pessoa ou animal que passasse,
começando a ser arrecadada em 22 de Abril de 1823, produzindo daí a 17 meses um
rendimento líquido de perto de 800$000 que, naquele tempo era dinheiro
apreciável, e por fim o Governo Imperial atendendo representação da Câmara da
Vila, de 4 de Dezembro de 1824, autorizou, por Portaria de 18 do mesmo mês a
aplicação do imposto de 80 réis por alqueire de sal importado da Bahia e
Pernambuco para a realização dos consertos necessários. Era encarregado dos
serviços, o Sargento Mór de Engenheiros Carlos Martins Penna, que construiu
pela primeira vêz a ponte do ‘Registro’”.
Paraty, passagem ao
ano 2011 da Era Cristã
Com o carro bastante avariado, me contaram que levaram quase duas horas pra vencer pouco mais de dez quilômetros, por uma trilha de precipícios por onde nem as mulas dos tropeiros passariam confortáveis. O Google Maps indica o mesmo e trágico – embora lindíssimo – caminho, em meio a um dos trechos de mais bem preservada Mata Atlântica. Sentamo-nos na nada chique mesa de latão, abrimos mais uma gelada, e como motobóis paulistanos em férias pusemo-nos a beber, ouvir as músicas que gostamos, e falar dos assuntos que quisemos, matando as saudades até firmar 2011.
![]() |
Parque Nacional da Serra da Bocaina, Estrada Paraty-Cunha, RJ-165. Registro de viagem de Marina e Antônio a Paraty, dez/2010. |