Coincidência
ou não, foi justamente em 1971 que o “russo alucinado” Vsesolod
Y. Semitchasny rodou um de seus filmes mais celebrados – e também
mais rejeitados: No leito da Rua Direita a História segue o seu
curso. No esquecido clássico de Semitchasny é justamente a
figura do ‘Centro Histórico’ que aparece como alegoria da
História – a História com ‘H’ maiúsculo, essa invenção do
Ocidente moderno.
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Cartaz original do filme, de 1971. |
O cenário
do filme é o Centro Histórico da fictícia Nova Elêusis, de
localização e história incertas, mas que faz alusão à antiga
cidade grega onde teria nascido o poeta Museu. Cenário, no
filme em questão, é um elemento fílmico de caráter um tanto
distinto daquele que assume historicamente não apenas no cinema, mas
também no teatro. Aqui, embora as ações se desenrolem sempre no
universo de Nova Elêusis, as tomadas foram realizadas em bairros
históricos de oito cidades distintas e de características muito
diversas: foram elas a Nizhny Novgorod russa, cidade natal do
cineasta; na Itália, a monumental Roma e a colorida ilha veneziana
de Burano; a gótica Stralsund, na Alemanha; a milenar e eclética
Cuzco, no Peru; o Rio de Janeiro e Paraty, no Brasil; e a mesma
Cidade do Panamá onde aconteceu o Seminário da Unesco.
Mas
apesar do que pode dar a entender o tour de force cenográfico
do experimentalista Semitchasny, não é o espaço que é aqui posto
em questão, mas a representação do tempo. O Centro Histórico de
Nova Elêusis, ela própria fictícia, aparece como alegoria da
História, esta materialização do desejo do homem moderno pelo
poder sobre o Tempo – que só pode acontecer pela criação de
ficções, sejam as registradas nos livros, sejam as edificadas nas
cidades.
Como num
road movie às avessas, os personagens de No leito da Rua
Direita... viajam o mundo sem sair do lugar. Os personagens estão
sempre em Nova Elêusis; mas Nova Elêusis, a cada cena (às vezes,
em planos diferentes de uma mesma cena) é sempre uma cidade
diferente. O escritor Ítalo Calvino nunca escondeu sua admiração
por Semitchasny, e certamente não foi por coincidência que escreveu
As Cidades Invisíveis em 1972, apenas um ano após o
lançamento do filme.
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Cartaz para a Mostra do Novo Cinema Russo, em 1973. |
Ao
alternar indiscriminadamente as locações onde foram filmados os
diálogos desconexos do filme, o mestre russo cria a imagem de uma
História absolutamente fluida e incerta, onde a grandiosidade
arquitetônica opõe-se à fragilidade dos personagens. Mas, não se
enganem, a espacialidade não é posta em questão. O filme é uma
ode à localidade, ao pertencimento comunitário ao lugar
como reduto da memória, e não da História com
ambições universais e deslocalizadas.
Se os
personagens principais do filme (sempre burgueses ambiciosos e
aparentemente seguros – mas só nas aparências, e o diretor é
muito hábil na arte de demonstrar sua verdadeira miséria), como o
arquiteto Andropov e sua jovem noiva Julia, alternam entre as
diversas locações, os personagens secundários, os figurantes,
estão sempre nos mesmos lugares. A cada vez que uma cidade aparece,
lá estão, em segundo plano, seus mesmos habitantes – habitantes
diferentes para cada locação.
O Centro
Histórico de Nova Elêusis é uma ficção, e tanto faz que história
seja contada, que signos sejam mobilizados para contá-la: o que
importa é quem a escreve e quem os manipula, e os protagonistas
desta disputa estão muito claramente definidos no filme.
A escolha
das duas locações brasileiras para o filme não foi por acaso.
Semitchasny esteve mais de uma vez no país, e era um declarado
admirador do filme Rio 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos
Santos. Há uma nítida influência do filme brasileiro em No
leito da Rua Direita... Em ambas as obras suas verdadeiras
protagonistas são as cidades, mais do que os personagens: o Rio, no
filme de Nelson; Nova Elêusis, para o autor de Porrete/Demência. Semitchasny esteve em Paraty a convite de Nelson, que naquele 1971 rodava no município o longa Como era gostoso o meu francês, depois de ter filmado um ano antes, na mesma cidade, Azyllo Muito Louco.
Mas essa não foi a primeira visita do russo ao Brasil. Semitchasny foi assistente de Orson Welles, e foi este quem o trouxe pela primeira vez ao país, em sua temporada por aqui em 1942. Voltou outras vezes, e teria rodado algumas cenas do clássico Porrete/Demência em Belo Horizonte, em 1959.
Mas essa não foi a primeira visita do russo ao Brasil. Semitchasny foi assistente de Orson Welles, e foi este quem o trouxe pela primeira vez ao país, em sua temporada por aqui em 1942. Voltou outras vezes, e teria rodado algumas cenas do clássico Porrete/Demência em Belo Horizonte, em 1959.
Assisti
ao raro filme de Semitchasny numa cópia em VHS que me foi emprestada
por um velho morador de Paraty, Seu Benedito, ele próprio figurante
nas cenas locais. Fiquei impressionado com a força com que o filme
alegoriza um aspecto da Paraty contemporânea que dificilmente o
diretor teria percebido no princípio dos anos 70. Naquela época, a
cidade ainda apenas iniciava o processo que a transformou em um dos
principais destinos turísticos do Brasil: 1971 é justamente o ano
de inauguração do trecho da Estrada Rio-Santos (BR 101, a famosa
‘Brioi’) que facilitaria enormemente o acesso por terra a Paraty.
Hoje,
como na tese que o filme de Semitchasny parece defender, o Centro
Histórico de Paraty é uma ficção alegórica que sustenta uma
versão oficial e raramente contestada da história da cidade. Se o
bairro parece preservar ou conservar o patrimônio
arquitetônico da ‘Paraty histórica’, a cidade-cenário de sua
própria narrativa oficial (centrada nos ciclos do ouro e da cana,
com a decadência econômica que a isolou após a abertura de novas
rotas portuárias e a abolição da escravidão), as fotografias e os
relatos dos moradores mais velhos não deixam dúvidas de que se
trata antes de uma reconstrução.
O cenário
do Centro Histórico paratiense, antes da descoberta pelo turismo,
era antes o de uma cidade decadente e abandonada. Casarões
condenados, carcomidos pelo tempo; quarteirões inteiros feitos
apenas de escombros; mas, mais importante que isso tudo, um grande
número de casas ecléticas, produto da arquitetura de muitos e
distintos períodos. Estas, foram quase todas demolidas (resta uma,
solitária, que em breve será retratada e devidamente apresentada
neste humilde blog); aqueles – todos os espaços vazios e prédios
irrecuperáveis –, foram transformados em lindos e impecáveis
'casarões coloniais', que via de regra servem de abrigo para a)
lojinhas para turistas ou b)
residência para ricos empresários paulistanos ou europeus.
O
mais grave não é a disneylandização do Shopping Histórico, digo,
do Centro Histórico; é que suas edificações sirvam de lastro para
a manutenção de uma história que apenas preserva e conserva a
concentração dos recursos (materiais e simbólicos) nas mãos de
uma elite que reúne a velha aristocracia das 'famílias tradicionais
de Paraty' e alguns oportunistas. É preciso abrir a história da
cidade, preenchê-la com as memórias de seus moradores – não
apenas os que ostentam sobrenomes Históricos.
A Carta
do Panamá apontava ainda para um aspecto fundamental, mas muitas
vezes esquecido, do trabalho de conservação dos Centros Históricos:
a musealização do patrimônio a céu aberto. Há muitos lugares
'históricos' no
mundo – Semitchasny escolheu oito para seu filme. São históricos
não porque têm história (é evidente que todos os lugares o têm);
mas porque são espaços privilegiados para a qualificação da
memória. Mas para tanto é preciso que sejam também qualificados:
sinalizados, discutidos, postos em dúvida.
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Vsesolod Y. Semitchasny |
A
repercussão negativa dos filmes de Semitchasny talvez devesse mais a
sua personalidade e conduta que à qualidade da obra. Sua fama era de
“louco alucinado” (donde o apelido de “russo alucinado”, que
sempre o acompanhou), e mesmo Stanley Kubrick, seu amigo e admirador,
referia-se a ele como um “doidão”. O cineasta americano chegou a
afirmar ter se inspirado em Semitchasny para construir com Jack
Nicholson o personagem principal de O Iluminado. Seu trabalho
foi posto em dúvida, assim como sua reputação. Hoje, no entanto,
praticamente esquecido, não há o que se por em dúvida.
Eis o
mais severo dos efeitos do esquecimento: a falência crítica. Neste
1º de abril, em que se celebra pela trigésima vez o Dia Mundial
pela Conservação dos Centros Históricos, vivemos também no
Brasil, mais do que nunca, um momento crucial na luta pelo direito à
memória. Não é a História (esta ficção nacionalista), mas a
memória o que está em jogo
quando lutamos pelo Direito à Verdade
no desarquivamento da história recente da ditadura no Brasil. Este
texto, incerto e disperso, é minha tentativa de contribuição neste
1º de abril à Terceira edição da blogagem coletiva pela abertura dos arquivos secretos da ditadura militar.
Encerro
com alguns links sobre o assunto: